domingo, 9 de setembro de 2018

COSTA FRANCO II CRONISTA SEM ENCOMENDA



MEMÓRIA DO RATINHO - Sérgio da Costa Franco

Quando me lembro das muitas coisas que ocupam minha memória dos 90 anos e que os contemporâneos mais jovens desconhecem, é inevitável que me venha a vontade de escrever. Vinte anos de crônica diária, no passado século vinte, me marcaram.
O primeiro estágio dos Costa Franco em Porto Alegre foi no bairro Menino Deus, então um arrabalde bucólico, onde restavam vastos terrenos baldios, chácaras onde se cultivavam frutíferas e hortigranjeiras, e o silêncio das noites só era quebrado periodicamente pelo ranger do bonde República. Minto. De vez em quando, para surpresa de todos, adultos e crianças, o sossego era quebrado pelos acordes do “homem da flauta”. Esse personagem andava pelas ruas do bairro com sua flauta de taquara, - instrumento artesanal com mais de metro de comprido -, onde ele assoprava melodia indefinida e creio que jamais identificada. Talvez uma valsinha antiga, tornada compatível com seu rudimentar instrumento. Houvesse público, ou não, para escutá-lo, ele parava em qualquer esquina e dava o seu recital gratuito, sem pedir propina ou qualquer espécie de retribuição.
Por muito tempo o chamávamos simplesmente de “homem da flauta”, até descobrirmos que ele era bastante conhecido no bairro como o “Ratinho”, pois outra de suas habilidades, além da música, era imitar a perseguição de um camundongo, o que fazia imitando os gritinhos de sua suposta vítima e surrando o chão com a flauta de taquara. Mas esse “show” só era dado a pedido e por insistência de seu público infantil. Quero imaginar que ainda hoje existam remanescentes desse público, certamente entre octogenários e nonagenários, pois não estou tão sozinho. Porém o bairro já não tem seu “Ratinho”. Certa padronização alcançou todo o mundo, e mesmo com o esvaziamento dos manicômios, não se encontram mais os tipos singulares eu davam pauta aos cronistas. Ou será porque não vamos mais às ruas desertas e sinistras da cidade?

COSTA FRANCO I CRONISTA SEM ENCOMENDA



O PRESTÍGIO DA ORLA - Sérgio da Costa Franco

     Era usual falar-se em “beira do Guaíba” ou ”margem do Guaíba”, como os demais rios, arroios ou lagos da província. E a “beira” era tão popular que até serviu para denominar o estádio do Internacional, construído em terreno generosamente doado pela Prefeitura de Porto Alegre: o Beira-Rio, sem mais retoques. Mas eis que o Município resolveu enfeitar e reurbanizar um trecho de sua popular “Avenida Beira Rio”, oficialmente rotulada de “Edvaldo Pereira Paiva”, desde o tempo do Prefeito Alceu Collares que a construiu e inaugurou.  O importante eixo viário que desafogou o tráfego para a Zona Sul não foi tão celebrado e homenageado como vem sendo agora esse pequeno trecho, que ganhou alguns melhoramentos e enfeites, no espaço entre a Usina Elétrica (erradamente chamada de usina do Gasômetro) e o monumento das cuias, também conhecido como “monumento das tetas”. Os veículos de comunicação ou os próprios órgãos da Prefeitura, ou fosse lá quem fosse, desde logo começaram a falar num projeto de revitalização da ORLA do Guaíba. Não era a beira do Guaíba, nem a margem do Guaíba. Era a ORLA. Mesmo que o termo não fosse de uso corrente e que o povão falasse habitualmente em BEIRA do rio, como já falara outrora em “Rua da MARGEM”, para referir-se à margem do arroio Dilúvio. E tanto se bateu na tecla da ORLA, que esse termo deixou de ser substantivo comum, para se tornar em Porto Alegre um nome próprio, merecedor até de inicial maiúscula. Dias atrás uma pessoa me perguntou se eu já tinha visitado a Orla. Sem me dizer orla de onde ou orla de quê.
     Os especialistas em Linguística poderão esclarecer se esse prestígio súbito de certas palavras pode acontecer e porquê. E foi forçoso que me lembrasse dos ACRÍDEOS. Foi isso lá pela década de 1940. Houve em Porto Alegre e arredores uma praga de gafanhotos, que devastou hortas e jardins, tomando vulto na pauta dos jornais da época. E meus colegas da imprensa, no louvável anseio de enriquecer cientificamente seus textos, consultaram especialistas em insetos e descobriram que o popular gafanhoto pertence à família zoológica dos acrídeos. E, de uma hora para outra, não se falou mais em gafanhotos, mas em acrídeos. Os acrídeos atacavam em Viamão e Gravataí; nuvens de acrídeos aterrorizavam Belém Novo e Vila Nova. E tal foi a popularização dos acrídeos que, no primeiro Carnaval, um grande bloco, creio que da Baronesa ou do Partenon, intitulou-se “Acrídeos do samba” e desfilou no Centro com o estandarte de um vistoso gafanhotão. Era a entomologia triunfante, saindo das academias e ganhando as ruas... A ORLA ganhou prestígio semelhante aos acrídeos.