terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Desencantando Dulcineia (II)

(continuação)
- ...e eu vou ficar ofendida se não disseres o meu nome!
E as recordações fluíam tênues, fugazes e vaporosas no cenário do seu pensamento. Naquele crachá, ele mal e mal conseguia distinguir um sobrenome que lhe soava estranho. Esforçava-se, tentando tornar mais nítidas as visões que surgiam embaralhadas em sua mente. Na retina dos seus olhos, tinha fotografado um vulto feminino e podia até sentir que se tratava de uma menina. A penumbra do seu inconsciente ia-se dissipando aos poucos. Já podia extasiar-se ante um rosto formoso no qual brilhavam aqueles olhos verdes maravilhosos a contrastar com sua pele clara como se fosse uma linda boneca de porcelana. E os cabelos a descerem suavemente sobre seus ombros quais filetes de água de uma cachoeira, dourados pelo sol. E o corpo esbelto com movimentos e gestos graciosos, realçando seu porte elegante. E a sua maneira educada e cortês de tratar as pessoas. E o selecionado séqüito de seus admiradores que disputavam as suas boas graças. Era como se estivesse esboçando o perfil de uma dama perfeita sobre todos sentidos!
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- E tu nunca me destes a mínima bola!
Quem ele era, vagabundo de ambições e miserável de sonhos, para ousar sua vontade de juntar as migalhas da esperança daquela tão difícil aproximação! Não, ele não tinha coragem de fitá-la nos olhos e nem ao menos de contemplá-la ao longe para apreciar embevecido sua beleza exterior sem que ela o percebesse, com receio de ser fulminado pelo raio da paixão de um amor impossível. Mil vezes ele preferia curtir o egoísmo de sua solidão, completamente alienado ao belo desabrochar de flores que renasciam a cada dia de sua existência.
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No entanto, agora ele estava a fitá-la nos olhos, querendo reconhecê-la e compará-la com a imagem que ficara gravada em sua retina, com a memória teimando em aceitar aquela fisionomia tão radiante de simpatia e de afeto. E entre eles se interpunha a figura de um amigo desaparecido que talvez os tivesse tentado aproximar em vida. E, quem sabe, aproveitava-se daquela ocasião para retomar espiritualmente o fio daquela conversa interrompida.
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Agora ele voltava após ter feito o mundo, diplomado nas quebradas da experiência. Tinha se tornado um jornalista famoso com sua coluna diária que era publicada numa cadeia de periódicos de todo país. Suas opiniões eram respeitadas ou contestadas. Acostumara-se a influir e manipular com o sentimento do público. Habituara-se a ser bajulado e requisitado nas rodas de homens de negócio, políticos e mulheres elegantes. A todos e a tudo reagia de maneira fria, sem demonstrar o mínimo entusiasmo por quaisquer acontecimentos. Na verdade, tinha se tornado um objeto usado por todos e a todos usando, tal era sua desligada subjetividade ao evitar um envolvimento com os presentes descambando ao terreno das emoções. Suas palavras sempre soavam como se fossem medidas, quase decoradas, pois as escrevia burilando com o pensamento antes de externá-las.
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Mas agora, naquele momento crucial, sentia-se como um andróide adquirindo a condição humana. Seu coração começava a andar aos tropeços e derrapava desajeitadamente na pista da vida. De repente, experimentava uma nova sensação ao se surpreender perturbado e angustiado por não conseguir corresponder àquela demonstração de amizade tão pura e fraterna. Quando apenas lhe bastaria balbuciar a palavra mágica do nome de sua interlocutora que a memória punha-se a rejeitar. E aquela confusão de idéias sucedia-se numa associação maluca. Um diálogo de amigos interrompido no espaço e no tempo. Uma revelação que não fora desvendada. A figura de uma jovem que surgia nos meandros da sua recordação. Seria ela que ali o recebia de forma tão cordata? Afinal por que não conseguia reconhecê-la?
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E assim o cumprimento já se fazia desfeito e as mãos que se ligavam antes numa saudação amistosa, agora seguravam os braços um do outro como a se apoiarem no gesto equilibrado e formal da troca de beijos nas faces por duas vezes seguidas e dispensando a terceira por desnecessária.

DESENCANTANDO DULCINEIA (I)

- Você, hein? Seu Peixotinho, agradando assim e não contando nada para os amigos!
- Não sei do que estás falando.
- Não sabes por que não queres enxergar o que se passa a teu redor.
- Mas eu juro que não percebi nada.
- Pois é, eu fiquei sabendo por que uma garota espetacular, flor de bonita, andou me inquirindo, querendo saber se tinhas algum problema. Não entendia porque nunca olhastes para ela que tem tanta vontade de te retribuir esta atenção.
Naquele exato instante, estava a lembrar o velho amigo, companheiro das noites de boemia e das confidências no tampo de mármore daquela mesa de bar em que estavam sentados a conversar numa longínqua noite do passado de sua vida. O diálogo tinha sido interrompido com a chegada de outros amigos, outros convivas que não interessaria discutir assunto tão pessoal e que achavam oportuno manter em discrição.
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- Peixotinho, tenho lido a tua coluna. Teus artigos são bárbaros, aliás, eu tenho recortado e guardado muita coisa do que escreves? Tu não te lembras de mim? Não vale olhar no crachá. E eu vou ficar ofendida se não disseres o meu nome!
E ele ali estava constrangido, tentando vislumbrar por entre as frestas dos dedos daquela mão que delicadamente ocultavam as letras confusas gravadas na identificação, enquanto a outra mão, esguia e aveludada, permanecia ligada à sua num cumprimento prolongado e amistoso. Ela ali tão próxima e íntima e ele lá tão distante e desligado.
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Mas naquele momento, naquele exato instante, ele se punha a divagar, lembrando do amigo que tinha partido para outra melhor e que nunca mais o viu. Um acidente automobilístico tinha-lhe privado do convívio do velho companheiro que tanto o estimulava a aspirar pelas coisas boas da vida, a não fugir da sorte quando esta lhe batesse à porta. E aquele diálogo continuava interrompido, permanecendo envolto no véu do mistério o nome de uma bela mulher que não fora revelado.
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- Peixotinho, se tu soubesses quanta vontade eu tinha de pular contigo nos bailes de carnaval, tantos sinais que eu fiz para ti, quanto me expus para te chamar a atenção, e tu nunca me destes a mínima bola!
No carnaval, ele costumava colocar à solta todos os seus talentos reprimidos e se expandia num turbilhão de loucas alegrias. Gostava de tomar conta do salão, sozinho, mal a orquestra começava a ensaiar os primeiros acordes do Zé Pereira. Tinha a sua própria coreografia com os movimentos e volteios bem ritmados que o tornavam naquelas quatro noites, nas ruas e nos salões, um atleta de invejável preparo físico.
Diziam que ele só fazia aquilo embriagado, mas seus lábios nem chegavam a umedecer as bordas de qualquer copo. Contagiava-se de tal forma com aquela loucura coletiva que ficava completamente ofuscado com a multidão deslumbrante. E aí se punha a dar arremetidas enfurecidas nos moinhos de sua imaginação, qual cavaleiro solitário em busca da amada dos seus sonhos. E um palmo adiante do seu nariz não conseguia enxergar a Dulcineia desencantada.
(continua)

sábado, 10 de janeiro de 2009

DISCONTUS : XXI, XXII, XXIII & XXIV

DISCONTUS XXI
Ela me reconhece na passeata dos bancários, pergunta se lembro dela. Está diferente: fez plástica no nariz. Exalto sua aparência. Vai se aposentar. Tão jovem, não acredito. Problemas de coluna. Sinto-me um caco.
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DISCONTUS XXII
Alguns papéis chegam-lhe às mãos. Irresistivel sua curiosidade. Entre tantos versos, um retrato de mulher. Os olhos de leve umedecidos, ela diz:
- Mas em vida sempre foi um bom marido.
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DISCONTUS XXIII
Sombras orvalhadas cobrem o cerrado das sepulturas. A claridade indiscreta da lua flagra um vulto se esgueirando na alameda dos cipestres. Debaixo da capa preta, uma viola escondida.
Seu pai sempre gostava daquelas serenatas.
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DISCONTUS XXIV
E nem sentia o tempo passar, seus dedos ágeis quais bailarinos-equilibristas a saltitarem nos cabos esticados. solfejando um tema melódico:
La-ra... la-la... La-ri... La-ra-la-ra-ra....