terça-feira, 24 de junho de 2008

P_E_N_E_L_O_P_E_D_I_C_A


Texto constante do álbum comemorativo à passagem dos 50 anos do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, oferecido em 21/06/1995 pelos ex-integrantes de sua Oficina de Criação Literária.
*******
Aonde houvesse um trapo, ela juntava.
*******
Amarelo claro, rosa esmaecido, verde musgo,
logo distinguia a tonalidade de cada cor.
*******
À luz do lampião, dispunha no solo
losangos, trapézios, meias luas, estrelinhas...
*******
Quando percebia algum efeito,
encarregava agulha e linha de resolver.
*******
Sem atropelos nem preocupações
(havia um anjo vigilante).
*******
Assim ocupou toda existência,
sempre esperando concluir a colcha de retalhos.
*******

terça-feira, 17 de junho de 2008

DISCONTUS : V & VI & VII & VIII

DISCONTUS V --------------------------------- Atende o telefone: mudo, desliga. Nova chamada, outra vez calado; se põe a xingar, bate a peça furiosa. Mais três ou quatro tentativas, deixa tocando até que cesse. Ocorre-lhe deixar o fone fora do gancho: ------------------------------------- - Dá trote agora, seu desgraçado! DISCONTUS VI -------------------------------- Na estrada, a morena super-gostosa fazia sinais. Parou bem em frente a ela. Tratava-se de trocar o pneu. -------------------------------------------------- - Com todo prazer... ---------------------------------------------------------------------------- Feito o serviço, ela agradeceu, entrou no carro e foi embora. DISCONTUS VII ----------------------------------------------------------------------------- Loura, maneira audaciosa de vestir, lábios tão tentadores, um azul perdido nos olhos. É insinuante na sua fala, tem graça no folhear das páginas coloridas da amostra encadernada. Quer fechar o pedido, se vou ficar com a obra: ---------------------------------------------------------------------------------------------------------- - Enciclopédia que nada, me dá o teu telefone! DISCONTUS VIII ---------------------------------------------------------------------------- Frequentemente buscava sintomas nos livros - nenhum que já não tivesse. Nunca usava sanitário público, pois só em casa podia fazer assepsia nas mãos e se banhar depois das necessidades fisiológicas. No necrotério constataram: --------------------------------------------------------------- Estava embalsamado desde que viera ao mundo.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

...e acabei quebrando a cara!!! (III)

(continuação)
Ai quem me dera que a estória terminasse por aqui. Outra vez, um dos trapezistas Hermanos Aguileras não podia participar do número com indisposição estomacal.
Carambôla - assim eles me chamavam – tenés que ir!
E lá naquelas alturas, numa das plataformas Carmencita, aquele mulherão de tirar o chapéu, e na outra, Huguito e eu. Carmencita se manda e vem até nós:
Veni, Carambôla!
Eu me atiro de qualquer jeito, ela me apanha no ar e me leva até a sua plataforma. Ali ela se agarra toda em mim:
Mi querido, mi querido...
Do outro lado, Huguito salta no seu trapézio, Carmencita me empurra, Huguito cruza os braços e eu fico pulando na rede de segurança. Carmencita logo vem em seu trapézio e me segura num daqueles pulos, voltando comigo até sua plataforma, e eu de lá tocando flauta no enciumado Huguito:
Mi querido, mi querido...
Esperem aí, eu tenho mais coisa pra contar. E aquela do atirador de facas, então, não tem no gibi. A companheira entrou em licença-maternidade e eu tive de me travestir como partner. Primeiro, eu vinha aos pulinhos e ficava rodopiando em volta de Dom Orlando que anunciava:
Y ahora com usteds el renomado batedor de la cavaleria americana, el Indio Apache com sus machaditas mortales...
Ele entrava todo agachado, os joelhos dobrados, olhando de um lado para o outro com uma das mãos em pala sobre as vistas e brandindo um enorme machado acima da cabeça, chegava a dez passos de onde se encontrava a roleta, erguia-se e esperava que me amarrassem naquela roda, aí se virava de costas, colocavam-lhe a venda nos olhos, a roda girava e ele atirava as machadinhas que se cravavam a milímetros próximos do meu corpo, ora no sovaco, ora quase arrancando uma das orelhas, no meio das pernas e por aí afora. O segredo do truque estava no peludo que girava a roleta, aparando as machadinhas nas áreas livres. Assim, é que, graças à sua habilidade, consegui sair são e salvo daquele número. Quando me soltaram da roda, eu tremia adoidado. Tiveram que me segurar para que eu andasse até onde se encontrava o Indio Apache, que me perguntou:
Como te llamas?
Carambola, eu lhe disse. E ele:
Ahora, eres Caram...
Eu insisti: Carambola. A observação dele:
Pero, mira lo que se quedó pendurado en la ruleta...
Desgraçado, desgraçado, eu te mato, eu te mato - e o Indio Apache saiu dali zunindo como uma flecha.
É melhor parar por aqui, se não eu é que vou ter de me desviar da pontaria de vocês!
Fum Imbora Mem?

quarta-feira, 11 de junho de 2008

...que fui aliciado por um circo... (II)

(continuação)
E aí começou a entrar bicho que não acabava mais, era elefante, era girafa, era urso, era macaco, era pônei, era cachorro, era palhaço, era trapezista, era equilibrista, era mágico... Mas eu comecei a me fixar na bailarina branquinha, branquinha, de uma alvura de propaganda de sabão em pó, ela vinha equilibrada num pé só, os braços estendidos e a outra perna esticada no ar, nem se mexia, em cima de um percherão e, naquela aflição, eu fui girando, girando junto com o carrossel e nem me dei conta que estava me enredando todo com o fio do megafone. Aí o cara que vinha em cima do elefante percebeu o que estava acontecendo e murmurou na orelha do bicho:
Ciranda, cirandita, vamos todos cirandar.
Ciranda, cirandita, media vuelta vamos dar.
O elefante girou para trás e a bicharada veio junto e eu rodando no carrossel consegui me soltar daquele monte de fio. Foi então que o percherão saiu da roda e ficou andando de lá pra cá e de cá pra lá na minha frente. Numa dessas, levantou a cola, deu um pinote e ploft ploft seguiu no trote. A bailarina deu uma mexidinha e logo se recompôs, mas eu não resisti e dei-lhe um baita berro:
Cuidado, niña, que te vas a melecar toda!
Vocês podem pensar que com essa eu já estava livre da enrascada, que nada, não é que Don Orlando me convidou para viajar com o circo e eu fui ser pau para toda obra. Um belo dia, o domador inventou de sumir na hora do espetáculo e adivinhem quem foi que teve de entrar na jaula com as feras? Não teve jeito, me explicaram direitinho e lá fui eu fazer outro papelão para enfrentar o Sultão e o Poderoso. Acontece que o tigre Sultão era gay e eu não podia deixar ele se aproximar muito de mim para que não me agarrasse e fizesse alguma indecência na frente da platéia. Era chicotada pra cá, chicotada pra lá, uma cadeira na outra mão empurrando ele pra longe quando se punha a rebolar:
No te fresquees, Sultón!
Já o Poderoso era um leão velho, bastante dorminhoco, que eu tinha que despertar a toda hora, dá-lhe chicote, fincar a cadeira na sua juba, bater no tambor, assustá-lo com o barulho, porque se facilitasse perigava ele cair no ronco ali mesmo. Assim, eu tinha que gritar alto e bom som:
Poderoso, mostrate como eres valiente!
(continua)

Faz bem uns cinquenta anos... ( I )

Lá na minha terra apareceu um famoso circo. De longe, assisti os caminhões chegando e descarregando todo o material para a montagem do picadeiro, das arquibancadas e da cobertura de lona. Era uma corrida só de peludos pra lá e pra cá, esticando as cordas, carregando painéis, o diabo a quatro. A estréia estava prevista para o dia seguinte e tudo tinha que ficar pronto até lá. Enquanto isso, todo o elenco ia desfilando pelas ruas da cidade, as jaulas uma atrás da outra, leões, tigres, ursos, depois os elefantes, a girafa e outros bichos mais.
Como era o costume naquele tempo, quando não se tinha dinheiro para pagar o ingresso, passava-se às escondidas por baixo da lona e assim o fiz antes da sessão começar só para dar uma olhada mais de perto nos animais. Então, um cidadão de cabelos grisalhos, alto, corpulento, chegou até onde eu estava e me cochichou ao pé do ouvido, com a voz rouca quase sumida: Buenas, soy Don Orlando, el proprietário del circo e necesitaria que usted hicieseme um pequeño favor. Ocurre que estoy afónico, imposibilitado de presentar el espetáculo y faltame un substituto. No tiene mistério, usted puede hacer eso facilmente. Yo le enseño despacito y usted se va a desempeñar muy bien.
Surpreendido no flagrante, eu não pude me recusar de jeito nenhum. E assim lá fui eu para o centro da arena. Naquela época, ainda não existia o microfone e a última palavra de equipamento era um megafone com fio ligado na tomada elétrica. Pois bem, mal a furiosa põe-se a tocar e eu entro correndo até o meio do picadeiro e começo a anunciar:
Señores e señoras, a partir de ese momento, el Gran Circo Universal tiene el honor de presentar al respectable público, sus atraciones internacionales...
(continua)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Quando vai me deixar esse remorso?

"O cheiro óbvio de remédios e desinfetantes percorre os corredores do hospital. O quarto está cheio de gente e de conversas. Poucos tubos para uma enfermidade deste calibre. Recostado na cama, ao centro de todos, ele mastiga bolachas amolecidas no leite. Vê quando chego. Tenho certeza que me reconhece. Seus olhos escurecem como no efeito súbito de algum veneno. Tento sorrir, ele não. Paralisa em mim seu olhar retilíneo. A mulher a seu lado enfia-lhe mais uma bolacha pela boca. Ele tritura com raiva." (Themis Vieira da Silva)
Não tinha a mínima noção do que se passava a seu redor. Muitas vezes nós o víamos andando nú dentro de casa. Era uma dificuldade imensa para vestí-lo. Já não controlava mais as necessidades fisiológicas; suas roupas precisavam ser lavadas constantemente. Todas as noites tínhamos de levá-lo até seu quarto na hora de dormir. Então se punha a falar com parentes já falecidos, ignorando nossa presença ali perto. Meu marido inquietava-se, vendo a velhice tomar conta de mim. Os atritos sucediam-se com nossos filhos; eles não podiam desfrutar plenamente a sua juventude, ocupados em vigiar os passos do avô.
A ambulância chegou na clínica. A maca foi conduzida até uma sala de espera. Eu o acompanhei para providenciar a internação. Muito me custara assim decidir. Ele sempre morou conosco desde que mamãe falecera há quinze anos. Mas lembrei-me das recomendações do médico: o desgaste da família, que eu me poupasse. A recepcionista veio me atender; encontrou-me atarantada com minhas dúvidas. Preenchi o formulário de forma mecânica, quase rasgando-o. Querendo desistir. Depois, levaram-no para o quarto que lhe foi destinado. Aos prantos, voltei para casa. Sozinha.
Junto com meu marido, venho para a visita. Os garotos ficaram em casa; também estão sentindo falta do avô. Os corredores do hospital são um verdadeiro labirinto: custamos a encontrar o caminho certo. Eu preciso conter-me para não sair em desabalada carreira. Nossos pés pisam macio na passadeira que se estreita na longa distância. Fiapos úmidos escorrem em minha face. Disfarço, o lenço escondido na mão fechada, enquanto nos mantemos atentos na numeração das portas que se sucedem. Estou ansiosa, não sabendo como ele nos vai receber.
Algum dia, é certo, ele partirá do nosso convívio. Essas visitas deixarão de ser cumpridas. Ele irá descansar do isolamento que lhe foi imposto por essa maldita doença. E comigo ficará uma pontinha de remorso.