Don Ramón trabalhava na Aduana uruguaia
da Ponte Internacional Mauá (Rio Branco) e, ao que me consta, tinha seus
“bicos” como agente do magazine London Paris, de Montevidéu, capital daquele
país vizinho. Como tal, costumava ir até Jaguarão, no lado brasileiro, para
repassar o volumoso catálogo daquela conceituada casa comercial a meu tio
Cantalício Resem. Para mim, menino ainda, era uma tentação folhear as páginas
da esmerada publicação, sem exigir aquisição de qualquer produto ali exposto,
cuja encomenda era decidida por quem dispunha dos recursos necessários.
Pois este catálogo e mais as figurinhas
do chocolate Águila, então adquirido “allá de la puente”, ainda permanecem
fixados nas recordações duma longínqua infância. Lembro ainda que Don Ramón era
irmão de cor e sangue de Frederico, que morava e vendia bilhetes de loteria em
nossa cidade. Ambos negros elegantes bem vestidos, mas que se distinguiam falando
cada qual o idioma da localidade em que residiam, já que seriam “hermanos”
apartados por duas pátrias com um mesmo berço de origem – o que bem
caracterizava o nosso amálgama fronteiriço.
E assim me esforço para trazer a mente
outros bilheteiros como a admirável figura humana do saudoso Buré, deficiente
físico com defeito em ambos os pés e dificuldades na fala, mas com uma notável
capacidade de superação. Buré morava bem longe, lá pelos subúrbios da capela
São Luiz, e se deslocava de pés descalços até a zona central de Jaguarão, sem
recursos na época para usar sapatos especiais. Torcedor fanático do Navegante
Esporte Clube, insinuava-se pelas mesas do Café do Comércio, sempre bem
recebido e generosamente aquinhoado com o troco do cafezinho.
Fui-me da querência e andei por outros
rincões, sem que deixasse de chegar inúmeras vezes por lá para rever amigos e
parentes. E Buré que ali ficou, quando me enxergava sempre tinha seu bilhete
com a saudação cordial, enquanto eu notava uma transformação gradual em sua
vestimenta e aspecto físico, alcançando almejado par de sapatos, além de roupas
limpas e chapéu que lhe garantiam uma melhor qualidade de vida. Como resultado
da profícua e honesta atividade que exercia.
Remexendo no subconsciente, surge-me uma
época em que frequentava a casa de meu primo Anysio de Souza Resem, vizinho da
residência e oficina mecânica de Cláudio “Sheda” de Freitas, ali fazendo
amizade com a turma vizinha que me acolheu na esplanada das figueiras de trás
do Mercado Público, onde o pessoal corria atrás de uma bolinha de meia, muito
bem tratada por um negrinho franzino, conhecido por Hiria, abusando de dribles
desconcertantes. Paulinho e Adão, da família do “Sheda” e mais Ercio Gentil
eram outros companheiros inesquecíveis.
O “campinho” se situava entre a Usina
Elétrica e o Mercado, no início da Rua 27 de Janeiro e, na outra rua paralela,
XV de Novembro, havia um amplo largo totalmente desocupado até começarem as
obras de construção da Capitania dos Portos. Cercada de tapumes, que a gente
dava jeito de invadir para dar vazão às travessuras imaginadas num esconderijo
das vistas de qualquer passante na Avenida 20 de Setembro (Beira Rio), propício
para assombrar algumas pessoas inadvertidas nas horas mais sossegadas. Para dar
o tom de alma penada, eu ainda arranhava na gaitinha de boca.
Numa dessas ocasiões, circulava ali na
Beira Rio o bilheteiro castelhano Marrecão, baixote e troncudo, buscando algum
cliente para acenar com a sorte grande. Não deu outra – na linha de frente, a
artilharia de estilingues se preparou e lançou as bolinhas de cinamomo (paraíso),
pegando em cheio o incauto que logo se virou para ver de onde vinha aquela
saraivada. Intrigado, aceitou a trégua e seguiu seu caminho. Ai resolvi soprar
a gaitinha para assistir os companheiros correndo de um lado para outro, o que
me obrigou a seguir atrás até me topar com Marrecão adentrando o recinto. Não
chegou agarrar nenhum de nós, mas não deixou de dar queixa ao Sheda e, a partir
do dia seguinte, este colocou seus guris no batente da oficina e ponto final em
nossa diversão.
6 comentários:
Excelente recordação, José Alberto. oisas e fatos que registrastes na memória ainda criança. Parabéns pelo texto. Obrigado e um abraço
Caríssimo Amigo,
Obrigado! Muito obrigado! Acabo de me deleitar, muito aprazivelmente, feliz, lendo essa sua bela crônica, sobre esses vendedores de pouca sorte, daquela sorte grande, inalcançada...
Como, estando, aqui, agora, nesta belíssima manhã ensolarada, em Natal, a capital do sol, eu haveria de conhecer esses homens, saber deles, de seus penares e circunstâncias, se não por uma crônica caprichada que o Poeta das Águas Doces decidiu postar?
Como, o mundo inteiro, todo o mundo, haveria de voltar a saber deles?
Sua crônica, Souza, ressuscitou, em poucas e lindas palavras, esses três!
E, mais, ainda, numa ressurreição histórica e geográfica, colocando cada qual, no seu momento e lugar!
Parabéns! Continue! Parar, jamais!
Grande abraço, do Garoeiro.
Recordar é viver, amigo Souza
Abraços
Cabeda
Souza,
Com tua rara habilidade para levar-nos ao passado, nos fazes lembrar um pouco mais da nossa inesquecível Jaguarão de ontem. A lembrança dela, mesmo estando sempre em nosso coração, é reforçada pela lembrança "lírica" que tu bem sabes retratar. Obrigado. wenceslaugoncalve.blogspot.com.br.
Conheci o Buré e lembro com carinho e fiquei mais contente em saber que melhorou de vida com tênis e tudo. Só voce para trazer essas lemnranças que dão sentido a vida.Um grande abraço amigo. clovis
Souza
Que bela recordação.
Parabéns.
Diná
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