sábado, 31 de maio de 2014

O BOM COMBATE DESTE SAUDOSO JOHNSON

Marcello Campos retoma sua brilhante trajetória de pesquisador arguto e incansável com mais um lançamento cultural ao resgatar a memória de um astro eclipsado na sombra de nosso compositor mais canonizado e decantado por este Brasil afora. As novas gerações que já começam a ter conhecimento da obra de Lupicínio Rodrigues esqueciam a importância daquele que viria a ser o seu mais fiel intérprete e até o confundiam como uma espécie de “anjo da guarda” tal a constância de sua companhia como se fossem “corda e caçamba”. Na realidade, Orlando “Johnson” Silva se tornou uma espécie de termômetro no qual Lupi testava suas composições.
Foi um desafio ao qual Campos se entregou de corpo e alma para compor mais este álbum, ricamente ilustrado, que sucede “Week End no Rio” (sobre as cinco décadas do Melódico Baldauf) e “Minhas Serestas” (Vida e obra de Alcides Gonçalves) e agora acaba de ser lançado no último dia 26 no Centro Municipal de Cultura – “Johnson – o Boxeur Cantor”. Tarefa bastante complicada que demandou paciência e um tempo prolongado na busca de dados e fotografias, através de museus, bibliotecas, inúmeras entrevistas em nível de Ruy Castro e Fernando Moraes, que só mesmo um “rato” das redações poderia descobrir para trazer a público.
“Estúdios e estádios não eram apenas palavras parecidas ou ambientes semelhantes em quesitos como concorrência, popularidade e desconfiança aos olhos da sociedade conservadora” – o autor vai fundo na questão, quase definindo a dualidade de talentos do personagem, indeciso entre o pugilismo e a boemia, suas duas paixões. Eram épocas em que fervilhavam de gente os auditórios das nossas emissoras que se valiam de lotações maiores nos cinemas Castelo e Baltimore e, paralelamente, os tablados de grandes lutas atraiam um público fanático que não se cansava de torcer por seus ídolos. A maioria deles aqui radicados, dispensando apresentações de artistas de fora.
Pois Marcello Campos transita com desenvoltura nas diferentes fases da longeva existência dessa incrível personalidade da noite porto-alegrense, dissecando desde suas origens familiares, repassando sua atuação radiofônica e esportiva, até alcançar sua ligação com o inseparável companheiro de tantas noitadas. Para tanto, reconstrói toda história da introdução do boxe no Brasil, em especial reportando o ambiente da cena artística no Estado, em que relembra nomes e estampas pinçados em páginas amareladas de coleções de velhos jornais. E nos coloca como transeuntes num tempo que se vai desvelando familiar à medida que correm as páginas na leitura dessa obra.
Seus capítulos se desdobram como “rounds” de um bom combate, a principiar pelo prefácio de Juarez Fonseca “Calçando as luvas” e daí passando ao segundo “A Voz Morena da Cidade” e depois ao terceiro “O Boxeur Cantor”, ao quarto “Amigo Lupi”, ao quinto “Quando Eu For Bem Velhinho”, ao sexto “Fontes Consultadas”, ao sétimo “Agradecimentos”, ao oitavo “Ficha Técnica” e ao nono “Sobre o Autor”. Muito interessantes os quadros sobre “As Composições de Johnson” e “Johnson: Cartel Conhecido” (Categoria peso pluma/amador e peso leve/profissional). Eis ai uma boa dica para a próxima Feira do Livro.
MINICRÔNICA PARA MARCELLO CAMPOS
O garçom, sonolento, vai empilhando as cadeiras sobre as mesas desocupadas. A copeira joga o balde de água espumante no frio chão de lajotas. O dono do bar implora aos fregueses renitentes para fechar a conta, lembrando-os que já é a hora de se retirarem do recinto. Mas estes ainda insistem em mais uma das constrangedoras “saideiras”, com o que apenas conseguem a firme e decidida recusa do taverneiro. Resta-lhes tão somente a alternativa de saírem contrariados. Lá fora, as primeiras luzes da manhã ofuscam as suas olheiras consequentes das contínuas noitadas de ócio e fuzarca. O crescente ruído das buzinas e das descargas dos motores atordoam seus frágeis ouvidos, mais acostumados à sonoridade dos ambientes dançantes. Misturam-se, assim, à gente simples que desce nas paradas de ônibus, vindo dos subúrbios distantes, em busca do ganha-pão de todo dia e teimando em sobreviver na adversidade. Cigarras noturnas que cedem seu lugar as matinais formigas, poderiam até ser confundidos na reduzida multidão madrugadora, não fossem as vestes alinhadas e a cuidadosa aparência. Casacos trespassados. Calças bem frisadas, com perfeito caimento. Sapatos reluzentes de polainas brancas. Cabelos alisados, exalando perfume de brilhantina. Bigodinhos e cavanhaques diligentemente afilados. Discretas suíças, quase provocativas. Mas, mesmo assim, passam entre olhares indiferentes de outras pessoas que nem sequer imaginam o mundo de luxúria em que eles vivem... 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

ATÉ DEBAIXO DO MAU TEMPO, NEM ACREDITO


Dona Mimi, esposa do Coronel Ataliba, salientava-se em sociedade como guardiã dos bons costumes e da conduta familiar, admirável pelo carisma e desprendimento nas campanhas comunitárias. Não era de se estranhar, pois, aparecesse com frequência na coluna social do hebdomadário local em clichê destacado com a legenda: “Mimi e Ataliba Pereira esbanjando sua proverbial elegância”. Sempre apoiando o marido na política e nos negócios, não se constrangia de arregimentar um grupo de senhoras para recorrer todas as tardes, no período eleitoral, aquelas “casas-luzinha-vermelha”, conduzindo a plataforma da Aliança Popular que tinha o Coronel como patrono. Nessas ocasiões, costumava impressionar o mulherio, expondo um programa de creches e casamentos incentivados para as “operárias da periferia suburbana”.
O diabo é que o velho Ataliba andava meio mal acostumado com a “tolerância” de sua mulher, muitas vezes flagrando-o e fazendo o maior dos escarcéus, nem se contam as “amiguinhas” despachadas por ela e socorridas em postos médicos das redondezas à custa do dito cujo para não responder processo por lesões corporais. Todo dia avisada do expediente se prolongando com a desculpa de convocarem assembleia (estatuto sendo alterado, integralização de capitais e outras coisitas mais), Dona Mimi mal desconfiava das chegadas do marido lá no “Naitandei”.

Marli conhecia bem o “furacão Mimi”, o suficiente para pressentir uma tremenda catástrofe vindo por ai. Há tempos, ela prevenia Janete para evitar o “enrabixamento” do cliente abonado, a exigir exclusividade nos seus serviços. Mas esta colaboradora da casa nem ligava para essas advertências, estimulando inda mais a fogosidade restante do coroa. O negócio já estava andando longe demais e a “chefona” se precavia de alguma represália da “matriz”, afinal a casa era de respeito, não admitindo qualquer arranhão em seu patrimônio. Mas essa de Janete acompanhar o Coronel até a estância para ver a esquila, agora sim, passava dos limites, pois se sabe lá como a mulher do capataz se portaria, se era confiável ou dessas “bocas de jacaré”, pior ainda se íntima de Dona Mimi.
E para complicar as coisas, aquela chuva sem parar há mais de três dias encharcando as estradas de chão batido, era bem capaz de impedir a passagem pelo arroio, na volta para a cidade. E eles no maior descuido como pombinhos predestinados à caçarola. “Meu Deus do Céu, atentai para que Dona Mimi não os importune”, porém, Marli deixava de ser atendida em suas preces, estando o Senhor surdo para escutá-las: o chofer de praça Costinha veio lhe contar que saiu em auto atola-desatola até desistir, deixando a passageira num rancho, onde ela conseguiu um carro de bois para continuar a viagem. A matrona já não aguentava mais de saudades do seu “Libinha” e tinha resolvido encarar uma maneira de ir lá na estância.

Dois dias depois.
Janete não tinha saído das casas e o Coronel passara fora o tempo todo empenhado no serviço da esquila. Já havia anoitecido quando chegou de volta, sem reparar Janete esfregando o chão da cozinha, foi direto ao banheiro se recompor no capricho, dali saindo apurado para o quarto, onde o esperava a romântica Mimi:

- Que amorzinho esta filha do capataz! Tão prestativa, não achas, querido?

terça-feira, 6 de maio de 2014

A COMOÇÃO DE IMOLA SEGUNDO R. MOREAU

Uma das coisas que mais me irritava, há pouco tempo atrás, quando ia visitar algum conhecido, amigo ou parente, era ficar olhando para a televisão ligada e só ter oportunidade de conversar no intervalo dos comerciais. E ainda hoje não consigo entender como não se pode marcar qualquer compromisso noturno num horário mais cedo, pois o pessoal só começa a aparecer depois que termina a novela.
Assim é que fui pegando certa ojeriza pela telinha e acabei redescobrindo o prazer de ouvir o rádio do meu carro, como se estivesse conversando com algum companheiro de viagem, não obstante o protesto daqueles que reclamavam do volume alto do som, imprescindível para a empatia nessa comunicação. Principalmente, aos domingos pela manhã, quando tomava o rumo da casa da minha irmã Lucy que morava no Partenon, a fim de esvaziar uma térmica com água quente na cuia do chimarrão e jogar conversa fora nas horas mais quietas desse dia.
Nesse trajeto, deveria gastar mais ou menos uns quinze minutos na ida e outro tanto na volta, tempo suficiente para curtir a prosa que me chegava através das ondas hertzianas. Desta forma, eu dialogava com Raul Moreau que então apresentava o Manhã de Domingo, pela Rádio Pampa, e algumas vezes, ao chegar na volta, corria ao telefone para entrar em contato com a produtora do programa, a sua esposa Dª. Bete.
Certa feita, o nosso amigo Raul explanava sobre o desmascaramento da criatura do Lago Ness, falando da armação montada por uma equipe náutica, a qual havia confeccionado a cabeça do monstro com material plástico, isso lá pelo século XIX. Pois eu tive o desplante de ligar para Dª. Bete, perguntando se naquela época já existia o plástico, que ela encaminhou ao Raul e ele respondeu que não poderia responder naquela hora, solicitando a sua produtora que providenciasse a compra imediata de uma enciclopédia para ficar à sua disposição já a partir do próximo domingo. Aí, caiu-me a ficha e, na mesma hora, fiz a pesquisa em casa, onde constatei que o plástico era uma invenção bastante antiga, embora alcançasse recentemente a sua aplicação mais generalizada – sem querer, provoquei uma polêmica desnecessária.
O Raul Moreau era admirador incondicional do Ayrton Senna e das corridas de Fórmula Um, que acompanhava através dos bilhetes da produção do programa informando os resultados parciais, como naquele dia em que se preparava para entrevistar o cantor e compositor Rubens Santos, parceiro de Lupicínio Rodrigues. Só que, nessa ocasião, passaram-lhe a notícia do terrível acidente que vitimou o Ayrton Senna, deixando-o completamente abalado, sem condições de prosseguir apresentando o restante da programação, a qual perto do seu final teve de apelar ao Rubens Santos para que fizesse o encerramento, conseguindo este levá-la a bom termo.
Outro momento marcante do programa aconteceu no dia em que completou um ano a cirurgia em sua esposa, Dª. Bete, processada pelo espírito do Dr. Fritz, incorporado no médium e médico pernambucano Dr. Edson Queiroz, a qual descreveu em detalhes tendo como fundo musical No Llores Por Mi, Argentina, a mesma melodia ambiental tocada enquanto era realizado aquele procedimento que restaurou a saúde da paciente.
Durante a semana, na parte da tarde, o Raul também ocupava espaço na Rádio Pampa, com ótima audiência, tendo em vista a sua programação de variedades, misturando cultura e entretenimento. Então eu participava do Grupo Fábula, supervisionado pelo escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, que estava lançando uma antologia de contos intitulada Mais Ao Sul do Que Eu Pensava e fazia a divulgação da obra, junto com as colegas Jane Thompson Brodbeck e Patsy Ceccato, quando nos ocorreu contatar com a produtora Dª. Beth que imediatamente disponibilizou-nos a entrevista com Moreau. Lá comparecemos, justo no dia de seu aniversário, expondo a estrutura do nosso livro, onde cada um tinha um miniconto na abertura do seu capítulo. Espirituosamente, ele deu-nos a sua versão do gênero – uma professora passou para a classe como tema de redação Divindade, Realeza e Sexo, não demorando muito para que um dos alunos levasse o seu trabalho, onde estava escrito: “Ai, meu Deus – disse a princesinha – que bom!”

Por onde andará Raul Moreau? Há pouco tempo, tinha o seu espaço em nossa televisão através do Canal 20. Também publicitário, um profissional competente, carismático, mases de prosseguir apresentando o restante da programaçompletamente abaladose preparava para entrevistar o cantor e compositor Ru que, infelizmente, parece que não teve seu reconhecimento de parte das nossas emissoras. Que falta ele nos faz para animar as nossas manhãs de domingo!