Marcello Campos retoma sua brilhante
trajetória de pesquisador arguto e incansável com mais um lançamento cultural
ao resgatar a memória de um astro eclipsado na sombra de nosso compositor mais
canonizado e decantado por este Brasil afora. As novas gerações que já começam
a ter conhecimento da obra de Lupicínio Rodrigues esqueciam a importância
daquele que viria a ser o seu mais fiel intérprete e até o confundiam como uma
espécie de “anjo da guarda” tal a constância de sua companhia como se fossem “corda
e caçamba”. Na realidade, Orlando “Johnson” Silva se tornou uma espécie de
termômetro no qual Lupi testava suas composições.
Foi um desafio ao qual Campos se
entregou de corpo e alma para compor mais este álbum, ricamente ilustrado, que
sucede “Week End no Rio” (sobre as cinco décadas do Melódico Baldauf) e “Minhas
Serestas” (Vida e obra de Alcides Gonçalves) e agora acaba de ser lançado no
último dia 26 no Centro Municipal de Cultura – “Johnson – o Boxeur Cantor”. Tarefa
bastante complicada que demandou paciência e um tempo prolongado na busca de
dados e fotografias, através de museus, bibliotecas, inúmeras entrevistas em
nível de Ruy Castro e Fernando Moraes, que só mesmo um “rato” das redações
poderia descobrir para trazer a público.
“Estúdios e estádios não eram apenas
palavras parecidas ou ambientes semelhantes em quesitos como concorrência,
popularidade e desconfiança aos olhos da sociedade conservadora” – o autor vai
fundo na questão, quase definindo a dualidade de talentos do personagem,
indeciso entre o pugilismo e a boemia, suas duas paixões. Eram épocas em que
fervilhavam de gente os auditórios das nossas emissoras que se valiam de
lotações maiores nos cinemas Castelo e Baltimore e, paralelamente, os tablados
de grandes lutas atraiam um público fanático que não se cansava de torcer por
seus ídolos. A maioria deles aqui radicados, dispensando apresentações de artistas
de fora.
Pois Marcello Campos transita com
desenvoltura nas diferentes fases da longeva existência dessa incrível
personalidade da noite porto-alegrense, dissecando desde suas origens
familiares, repassando sua atuação radiofônica e esportiva, até alcançar sua ligação
com o inseparável companheiro de tantas noitadas. Para tanto, reconstrói toda
história da introdução do boxe no Brasil, em especial reportando o ambiente da
cena artística no Estado, em que relembra nomes e estampas pinçados em páginas
amareladas de coleções de velhos jornais. E nos coloca como transeuntes num
tempo que se vai desvelando familiar à medida que correm as páginas na leitura dessa
obra.
Seus capítulos se desdobram como “rounds”
de um bom combate, a principiar pelo prefácio de Juarez Fonseca “Calçando as
luvas” e daí passando ao segundo “A Voz Morena da Cidade” e depois ao terceiro “O
Boxeur Cantor”, ao quarto “Amigo Lupi”, ao quinto “Quando Eu For Bem Velhinho”,
ao sexto “Fontes Consultadas”, ao sétimo “Agradecimentos”, ao oitavo “Ficha
Técnica” e ao nono “Sobre o Autor”. Muito interessantes os quadros sobre “As
Composições de Johnson” e “Johnson: Cartel Conhecido” (Categoria peso
pluma/amador e peso leve/profissional). Eis ai uma boa dica para a próxima
Feira do Livro.
MINICRÔNICA PARA MARCELLO CAMPOS
O
garçom, sonolento, vai empilhando as cadeiras sobre as mesas desocupadas. A
copeira joga o balde de água espumante no frio chão de lajotas. O dono do bar
implora aos fregueses renitentes para fechar a conta, lembrando-os que já é a
hora de se retirarem do recinto. Mas estes ainda insistem em mais uma das
constrangedoras “saideiras”, com o que apenas conseguem a firme e decidida
recusa do taverneiro. Resta-lhes tão somente a alternativa de saírem contrariados.
Lá fora, as primeiras luzes da manhã ofuscam as suas olheiras consequentes das
contínuas noitadas de ócio e fuzarca. O crescente ruído das buzinas e das
descargas dos motores atordoam seus frágeis ouvidos, mais acostumados à
sonoridade dos ambientes dançantes. Misturam-se, assim, à gente simples que
desce nas paradas de ônibus, vindo dos subúrbios distantes, em busca do
ganha-pão de todo dia e teimando em sobreviver na adversidade. Cigarras
noturnas que cedem seu lugar as matinais formigas, poderiam até ser confundidos
na reduzida multidão madrugadora, não fossem as vestes alinhadas e a cuidadosa
aparência. Casacos trespassados. Calças bem frisadas, com perfeito caimento.
Sapatos reluzentes de polainas brancas. Cabelos alisados, exalando perfume de
brilhantina. Bigodinhos e cavanhaques diligentemente afilados. Discretas suíças,
quase provocativas. Mas, mesmo assim, passam entre olhares indiferentes de
outras pessoas que nem sequer imaginam o mundo de luxúria em que eles vivem...