domingo, 25 de dezembro de 2016

VEJA A CRÔNICA AVULSA DE UM APOSENTADO

T A T U A G E N S
Sérgio da Costa Franco

Entre as incompatibilidades que, no fim da vida, arranjei com o meio social em que vivo, está essa prática da tatuagem, que a cada dia encontra mais aderentes e mais espaço na pele de formosas criaturas, que assim danificam pernas, colos e braços antes perfeitos. E o pior é que não posso ao menos criticar essa opção pseudo-artística e estética, porque foi aceita e adotada por estimados personagens da família. O que antes – e assim se entendia até o meu tempo de adolescente – era uma prática de presidiários e desocupados, ou de marujos, para preencher as extensas jornadas de ócio, tornou-se atrativo de moças bonitas e bem-nascidas, de rapazes ilustrados e até de trabalhadores, condenados a “ralar” no dia-a-dia da construção civil, da indústria fabril ou do comércio.
Até admiro a coragem de quem é capaz de mandar gravar na própria pele, de forma dificilmente removível, o nome de uma namorada, sem nenhuma garantia de permanência no leque das afeições pessoais. Os surtos amorosos, especialmente entre os muitos jovens, podem levar a essas demonstrações de afeto, que são dolorosas de fazer e ainda mais dolorosas para desmanchar. Não por uma namorada (o que poderia render alguma coisa em termos de relacionamento), mas por afeição intelectual e ideológica, um dos meus netos mandou gravar no braço a imagem do Nietzsche, com seu formidável bigode. Eu nunca aprovaria essa opção ideológica, que também foi de Hitler e dos nazistas, mas o jovem aprendiz de filósofo, então com vinte anos, jamais consultaria o avô, e lá está ele com seu ícone imortalizado no antebraço, até que se arrependa algum dia e eleja melhor parceiro, talvez um pacifista como Gandhi ou Mandela, ou um santo como Francisco de Assis. Mas será difícil e penoso deletar todo aquele bigodão... E como o filósofo é mal conhecido e menos identificado, meu neto é visto, no Rio Grande do Sul, como um fiel devoto do Governador Olívio Dutra.
Dias atrás, passou por mim, sem camisa, um jovem que mandara gravar no lombo a estrela do PT. O que me pareceu um caso de empolgação transitória, que em certas praias e ambientes deve agora trazer-lhe dificuldades para despir a camisa. Talvez fosse bem pior se ele tivesse desenhado na pele uma foice e um martelo, como do agrado de alguns comunistas antes do desmanche da União Soviética. De qualquer modo, jamais convém gravar na pele as opções políticas, sempre passíveis de revisões e de arrependimentos. 
Os velhos marinheiros, que me consta haverem sido os primeiros adeptos da tatuagem, gravavam na pele a imagem das mulheres que conquistavam nos portos, mas sem fixar nomes nem datas. Não precisavam removê-las quando as esquecessem ou quando passassem a odiá-las. Eram apenas figuras de um passado perdido, que levavam na pele como uma página de história. Os jovens da atualidade ainda estão aprendendo que são passageiras muitas afeições e devoções intelectuais, e os amores, mais ainda, são fugazes e incertos.

domingo, 18 de dezembro de 2016

QUEM SE LEMBRA DE COISAS MAIS ANTIGAS? *

Mais uma do Mestre da Crônica Relâmpago
Na idade que alcancei, já tenho dificuldade de achar parceiros para relembrar coisas antigas. Os que superaram minha idade já são poucos, muitos estão desmemoriados e outros tantos, desinteressados de lembrar fatos e coisas de um passado remoto. 
Morei neste gostoso bairro do Menino Deus entre os 7 e os 12 anos de idade, ou seja, entre 1935 e 1940. E a ele voltei, já bem idoso, em 2013, decidido a esperar nele a visita da Magra. Aquele saudoso estágio infantil me encheu de boas lembranças, de muitas coisas desaparecidas, que em vão tento descrever aos mais jovens. E outras, que sei por leitura de livros ou jornais, mas que nunca vi ou não guardei na memória. Esse é o caso da Rua 28 de Setembro, que existia onde hoje é a parte final do canal do arroio Dilúvio. Devo tê-la avistado e conhecido, mas nada me lembro dela. Também não conheci o Jardim Zoológico fundado pelo Coronel Ganzo, pelo óbvio motivo de ter sido desfeito antes da minha chegada ao Menino Deus e ao mundo. Mas também não encontrei ninguém, - o que bem poderia ocorrer - que o tivesse conhecido em 1925, quando consta haver sido extinto. Essa é a grande dificuldade: encontrar parceiros para rememorar coisas antigas, ou para me informar de outras que ignoro Quem se lembra ainda do Ratinho, o homem da flauta de taquara, que tocava o seu instrumento nas esquinas do bairro? Quem recorda a louca Ciriaca, que respondia às provocações da gurizada com uma ladainha de palavrões e rematava sua catilinária erguendo a saia e mostrando o gordo traseiro ao público?  O preto que vendia ”mocotó baiano”, num grande recipiente aquecido por um braseiro? . E os pregões, hoje desaparecidos, do “feijão miúdo, batata doce e aipim gema-de-ovo”, que o próprio lavrador trazia em sua carrocinha? E quem poderia esquecer o Circo Irmãos Gomes, estabelecido com seu barracão num terreno baldio da José de Alencar, logo ali depois da Oscar Bitencourt, bem ao lado da casa do Dr. César Pestana? Os times de futebol varzeanos eram numerosos e achavam espaço para as suas partidas nos grandes terrenos baldios, que havia na Barão de Guaíba, na Grão-Pará e outras ruas do bairro. E, por falar em futebol, confesso que ainda vi jogar o F. C. Porto Alegre, de jaqueta verde e branco, apelidado de “caturrita”, e que era dono da “Chácara das Camélias”, hoje espaço de uma escola estadual e do supermercado Nacional. Muito mais tarde, por leituras de história da cidade, fiquei sabendo que esse “Porto Alegre” era o mesmo “Fussball", nascido no bairro Navegantes, no mesmo ano do “imortal Tricolor” e seu primeiro adversário. Vão dizer que eu minto, se disser que na torre da igreja do Menino Deus havia enormes corujas brancas, exemplares da “coruja das torres”, que a Enciclopédia chama de “suindaras”. Mas eu as vi, e digo que até me atropelavam, se eu fosse mexer nos sinos para cumprir alguma ordem do vigário. E por falar na desaparecida igreja, ainda testemunhei as movimentadas festas de Natal na Praça Menino Deus, onde havia rifas e sorteios de todo o gênero, jogo de argolas, tiro ao alvo... Destas festas há muita gente que ainda as lembra, pois ali nasciam flertes e namoros que depois resultavam em casamentos. De tudo isso, o que ficou mais vivo na memória? Talvez só o grande silêncio das noites, apenas cortado periodicamente pelo ranger ritmado do bonde República e pelos acordes da flauta do Ratinho. 
SÉRGIO DA COSTA FRANCO

domingo, 11 de dezembro de 2016

Mais uma de Costa Franco: "Os homens e os cães"

Ao caminhar aqui pela Avenida Getúlio Vargas, onde sempre há cachorreiros e cachorreiras levando cães a passeio, me deparei com uma singularidade: enorme homenzarrão com mais de metro e noventa e um respeitável diâmetro ventral (é como os especialistas da área médica estão chamando a velha e popular barriga) conduzia pela guia um cãozinho “Yorkshire”, enfeitado de fitinhas coloridas.
A desproporção entre o homem e seu cãozinho (provavelmente uma cadelinha, a julgar pelos adornos feminis) me levou a algumas reflexões. O que teria levado esta espécie humana, que gerava gladiadores, bandeirantes e caçadores de tigres a sujeitar-se agora ao vexame de andar pela rua com uma míni-cadelinha enfeitada de fitinhas? Certamente houve o precedente de um diálogo do casal: - Hércules, não tenho tempo de levar a Fininha ao passeio hoje. Podes leva-la? E o pobre Hércules, morador de apartamento, que não tem a graça de possuir um Labrador, um Rothweiler ou um Policial dignos da sua companhia, tem de submeter-se, por mera solidariedade conjugal, ao ridículo daquele desfile pelas ruas do bairro.
A ascensão social, demográfica e “política” dos cães é um assunto digno de preocupação. Integrados à sociedade humana, consumindo alimentos quase em equivalência aos humanos, resguardados por rigorosa proteção legal, os cães poderão superar a nossa espécie em futuros recenseamentos. Já hoje, há domicílios em que os totós são mais numerosos que as crianças e seus pais. E quem examinar as gôndolas dos mercados, vai encontrar ração para cachorros com mais fartura e variedade que o feijão e as farinhas.
Entretanto, nem sempre foi assim. Esta ascensão social do cão, em todo o Ocidente, é um fenômeno mais ou menos recente. Antes de Pasteur e da vacina antirrábica, temia-se muito os cachorros, sendo eles perseguidos pela famosa “carrocinha”, que há pouco tempo ainda circulava pelos bairros de Porto Alegre, para recolher os vira-latas abandonados na rua. Na zona rural, os cães gaudérios, quando viviam em matilhas numerosas, tornavam-se agressivos e exigiam operações policiais para a sua repressão. O viajante inglês Mulhall, na área da Lagoa Mirim, ainda recolheu a tradição das grandes matilhas de “cães selvagens”, que atacavam terneiros, gado miúdo ou pessoas a pé. 
Já no Extremo Oriente a história era bem diferente. Lendo ainda há pouco um livro de viagens do explorador inglês James Cook, o prestígio dos cães, em algumas ilhas da Oceania, era o de alimento dos nativos, rivalizando com os porcos, nesse particular. E os próprios ingleses tiveram de experimentar a iguaria, não muito a gosto, mas afinal elogiando-a. Na Coréia do Sul consta que ainda se consomem na mesa 2 milhões de cães por ano, segundo informa o Google. Mas não sei se conviria divulgar essa informação em alguns bairros pobres da nossa periferia, onde a desejada e necessária ração proteica é quase desconhecida.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A estreia de Sergio da Costa Franco, com louvores

Como não tenho mais jornal  para escrever, cedo ao impulso escrevinhador para cometer uma ou outra  crônica extemporânea e chatear os amigos e parentes. Abraço do  Sérgio (Costa Franco).
A MIXÓRDIA URBANA

O que vejo da minha janela não sugere poemas de amor nem de deslumbramento com a natureza, nem mesmo recordações amenas de minha distante infância no Menino Deus da década de 1930. É um retângulo feio de imagens heterogêneas, onde se mesclam modernos prédios de apartamentos à direita, do outro lado da avenida, com extensos telhados mal conservados, destacando-se o do edifício que faz paralelo com o meu, todo remendado com uma capa aluminizada, que brilha ao sol e ofende os olhos. Mais além vejo antenas, caixas d’água e as copas de algumas esgalgadas palmeiras, com as quais outrora se pretendeu arborizar e humanizar um bairro que fora rural e bucólico até o fim do século 19.
A dificuldade de conseguir apartamento que alojasse a biblioteca nos obrigara a uma demorada e penosa peregrinação pelas imobiliárias, até descobrirmos este simpático 402, longe do tráfego e dos barulhos da avenida, na face lateral do Edifício Palácio de Versailles. Internamente cômodo e apropriado às nossas necessidades, o apartamento nos condenava, entretanto, a essa prosaica e melancólica paisagem, longe de parques, de verdes e de quaisquer outros atrativos urbanos. Quando, no momento de fechar negócio, minha mulher lamentava essa pobreza da paisagem, o corretor Lorenci, com aquela infatigável capacidade de argumentar, que é própria do ofício, apontou para as esbeltas e despojadas árvores da avenida: - “Mas, daqui desta sacada, a senhora pode contemplar as palmeiras da Getúlio Vargas!” Era o átomo de verde consolador que nos oferecia...
Antes de tudo, `à nossa frente, uns oitenta metros quadrados do telhado cinzento da agência do Banrisul, que certamente não romantizam o panorama. Depois dele, um velho prédio de  apartamentos, que, em recurso contra as goteiras, teve seu telhado   recoberto com uma capa aluminizada, que brilha à luz do sol ou mesmo ao tímido  luar, ofuscando a visão dos vizinhos. Além do prédio de telhado ofuscante, mesmo sem poder enxergar nada, já sabemos o que existe: outro modesto edifício de apartamentos, uma oficina mecânica, agora evoluindo para “estacionamento rotativo”, farmácia homeopática, lojinha de serviços de informática,  varejo de calçados de baixo preço, lancheria de baurus e pratos ligeiros (recuso-me a falar em “fast food” e outras inglesices) e até um abrigo para pessoas idosas que invoca o Arcanjo Rafael. Mais além, a esquina da Rua Barbedo, outra peculiaridade do bairro: rua já secular, ostentando o sobrenome de uma família tradicional, embora sem identificar o  homenageado pelo prenome. Seria isso desnecessário naquele final do século 19, tal a importância social do homenageado? A outra face da avenida, seu lado par, nos oferece uma visão mais civilizada: há edifícios de construção recente, bem conservados, a porta movimentada de uma academia de ginástica, o vaivém incessante de uma agência lotérica. Mas prossegue a mixórdia desta cidade de crescimento espontâneo: há restaurantes, confeitaria, pequenas lojas e, mais além, fora das minhas vistas, o palacete enfeitado, de inspiração “art nouveau”, que foi da família Noronha, remanescente quase único dos solares nobres da velha Avenida 13 de Maio (teve esse nome até 1937), e que hoje hospeda uma empresa comercial.
Curiosidade que ainda se pode observar nesse panorama confuso é o da grande extensão dos fundos desses prédios, que no passado teriam sido área de hortas, de jardins e até de cocheiras, ao tempo em que havia cavalos e carros a serviço das famílias. Tal amplitude dos terrenos, da frente aos fundos, favorece hoje os caprichos da verticalização das construções, ou faz deles área ideal para a “indústria” do  estacionamento de automóveis, um dos ramos de negócio mais rentáveis da mixórdia urbana.
Se me detenho a escrever sobre essa inglória paisagem, é pelo vivo contraste com a que nós desfrutamos em nosso apartamento de Torres, - um luxo de panorama físico e humano, com os aparados da Serra emoldurando o fundo, o Atlântico pelo leste, e, logo defronte a nossas vistas, o traçado sinuoso do Mampituba, seus barcos de pesca indo e vindo do mar, sua ponte rodoviária, sua ponte pênsil, os restaurantes de beira-rio, os pescadores de caniço, que estão presentes desde a madrugada logo abaixo da nossa janela.

domingo, 20 de novembro de 2016

MUROS PARA CONTER NOSSOS "REFUGIADOS"


De repente, ele viu se ruírem vinte anos de experiência profissional, refletindo-se amargamente na própria existência como um castelo de cartas que desaba num simples assopro. Era mais um nas dezenas de milhões de desempregados brasileiros e, mesmo assim, buscava alternativas para sobreviver e contratava consultora especializada em colocação no mercado de trabalho. Explicava-me que nos dias atuais os currículos já eram direcionados às empresas de acordo com o perfil do candidato para se evitar o acúmulo de cadastros pessoais a serem examinados nas áreas de recursos humanos.
A consultora que contratara oferecia-lhe ainda oportunidades de investir suas reservas societariamente em empresas necessitadas de capital de giro, sem qualquer garantia de retorno financeiro, porém, via-se forçado a desistir pelo risco da empreitada. Chegou a elaborar um pequeno projeto de instalação de uma loja para comercializar jogos de computador, analisando detalhes envolvidos no custo benefício de um lucro razoável acima de 10% como rendimento satisfatório. E a concorrência do comércio informal dos clandestinos vendedores ambulantes impedia-o de levar adiante sua ideia.
Há pouco, surgiu-lhe oportunidade de atuar como sócio numa firma que buscava explorar em Santa Catarina colocação de máquinas de cartão de crédito no mercado local. Tudo levava a crer num investimento bem sucedido para que providenciasse sua inclusão no contrato social da empresa, além de contratar pessoal habilitado, com carteira assinada, na função de promotores de venda. Eis que, já obtendo algum retorno, compensando a representação do fabricante, este transfere seus direitos de manufatura a outro concorrente e acarreta o distrato como consequência da inviabilização do negócio.  
De maneira que hoje ele está ai, batalhando novamente para reestruturar sua carreira profissional e esperando resultados de concorridas entrevistas adequadas a seu perfil de candidato para a função ofertada. Ansioso e abalado por essa situação degradante do país, ele transfere suas expectativas para o exterior, para o Chile em particular mais próximo de sua origem, apesar de se constituir numa aventura em que necessitaria custear um longo período de adaptação e prova de capacitação até encontrar um lugar que o acolha definitivamente, com sua cidadania estrangeira assegurada.
Sempre me senti frustrado e de mãos amarradas quando algumas pessoas me solicitavam colocação para seus parentes e amigos, numa época em que não se acumulava uma grande demanda por postos de trabalho. E agora mais ainda observando essa debacle do nosso sistema social, a falta de solidariedade para com nossos “refugiados” sem qualquer perspectiva de melhoria em suas condições de vida, a ganância daqueles desprovidos de um mínimo pingo de consciência. Mas não deixo de enxergar o mérito no empreendedorismo de quem se dispõe a gerar novos empregos.
Creio-me um privilegiado chegando a um patamar difícil de ser alcançado por uma grande parte de nossa comunidade, porém, não me envergonho de minhas origens a percorrer uma trajetória de algumas conquistas a base de humildes meios de afirmação. E tenho compartilhado muito de meus ganhos com gente mais necessitada como se me exigissem um direito adquirido. Constranjo-me em dar “graças a Deus” por uma situação confortável em meio a uma multidão de miseráveis, sem um teto para se abrigar, sem recursos para se manter com dignidade como vem ocorrendo até hoje. 
Enfim estamos vivendo um tempo em que mais vale “ter” do que “ser”, em que competir se sobrepõe a cooperar, onde a corrupção ativa anda de mãos dadas com a passiva, causando grandes transtornos para nossa economia e exigindo cada vez mais o sacrifício da população mais humilde, continuamente afrontada com a ostentação de riquezas dos mais poderosos. Já é hora de ser implantada uma política de mais austeridade com melhor distribuição de renda e com uma efetiva assistência a todos os excluídos, principalmente moradores de rua, visando um objetivo de mobilidade social por meio de educação para que se libertem da apatia e do desânimo em evolução. 

domingo, 13 de novembro de 2016

O QUE APARECEU NAQUELA BOLA DE CRISTAL



São Bernardo do Campo, 11 de novembro de 1966.
Meu querido filho Jerônimo:
Hoje tive a grata satisfação de te avistar pela primeira vez através da vidraça da Maternidade local.
Nem queiras saber da indescritível emoção que tomou conta de mim naquele momento.
És o primeiro rebento de uma feliz união que se estreita ainda mais com a tua alvissareira chegada.
Por isso, eu quero que encontre em nosso lar humilde um pouco de harmonia e bastante carinho para que possas crescer sadiamente e receber uma formação moral adequada.
Meu filho, eu não espero nada de mais para ti – apenas que aprendas a respeitar e amar o teu próximo e que deixes o teu quinhão despretensioso para a comunidade em que viveres.
Naturalmente, terás os teus defeitos e as tuas virtudes, porém, espero que assimiles humildemente tudo aquilo que te representar algo de proveitoso e útil na constituição do teu caráter, quando for oferecido por alguém que realmente te estimar.
O que a vida nos proporciona – prazeres, alegrias, preocupações, tristezas e outras coisas mais – compensa todo o sacrifício que a ela se dedicar, pois um instante sequer que tenhamos de amor e felicidade vale mais do que todas as amarguras que nos embaracem a existência.
Que sejas um simples e um forte para que possas enfrentar com dignidade e honradez este mundo te esperando lá fora, são os desejos deste teu pai hoje alegre e contente contigo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

XÔ CRISE DANADA, VAI LOGO EMBORA DAQUI!

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Mas se a marmita da semana 
não for suficiente para alimentar minha fome, 
sem ninguém a quem apelar no resto do dia, 
vou ter de lavar parabrisa de carros nas sinaleiras para conseguir míseros trocados.

Cadê emprego, cadê salário, sem dinheiro 
que faço para sustentar mulher e filhos, 
os serviços escassos que mal compensam 
qualquer dura labuta e este tão terrível 
custo de vida que nunca para de subir?

Não me importo de sair empurrando 
carrinho de mão, enxada e pá para capinar 
algum quintal perdido por ai que virou mato 
pela preguiça do dono abonado, desde que renda alguma comida na mesa lá de casa.

Já me disseram que a crise está braba, 
que a gente tem de se virar para sobreviver 
nesta situação, tem que fazer malabarismo 
em qualquer lugar, até mesmo catando 
material que se põe fora nas lixeiras.

Antes que seja tarde, alguém precisa pensar 
em nosso sacrifício que não tem fim, 
sem nenhuma esperança de melhorar, 
para nos assistir nas mínimas necessidades próprias e dignas de qualquer ser humano.
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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

E ERA MAIS CÔMODO PERMANECER CALADO...

Chego a tremer cada vez que abro a boca para dar algum palpite, receando ter de assumir a responsabilidade consequente desse ato involuntário. Em meados do século passado, estava eu degustando uma rubiácea com alguns amigos, sentado a uma mesa do imenso salão do Café do Comércio, onde todos falavam em encontrar um adversário para a próxima “pelada” do fim de semana. Todos menos eu eram atletas de uma equipe varzeana. Na gozação, sem querer, ofereci-me para colocar em campo um time inexistente e amarrei naquele momento a tão desejada partida.
Pra quê, mudeuducéu, em que encrenca me fui meter! Agora precisava sair dessa enrascada sem fugir da raia. E lá me mandei a buscar gente disposta a correr atrás de uma bolinha, conseguindo arregimentar – literalmente entre os soldados do quartel – os onze elementos necessários para colocar em campo, tendo ainda de providenciar camisetas, calções, meias e chuteiras, gentilmente cedidas com material de treinamento de uma agremiação esportiva local, incluindo mais a bola da disputa. Mais chorado ainda foi o empréstimo do campo que o diretor do clube largou a duras penas.
E para dar um toque feminino na cerimônia, formei uma comissão de atletas para convidar uma beldade de que me fazia admirador para ser a madrinha do improvisado esquadrão de futebol. No dia aprazado, as duas equipes prontas para a peleja, lembrei-me que faltava o árbitro e corri atrás de um espectador presente que a caro custo terminou aceitando a incumbência, por sorte o zelador do estádio ainda nos alcançou o providencial apito. O juiz dirigiu-se ao meio do campo, onde lá estava nossa madrinha a postos para entregar o ramalhete de flores ao capitão do time adversário.
Depois que nossa madrinha se retirou, na base do cara ou coroa, foi escolhido o lado de cada um dos disputantes e já ia ser apitado o início do jogo, quando o capitão do outro quadro, pediu para me falar e veio reclamar minha presença dentro da arena:
– Mas como é, todas as providências ficaram por tua conta e nem te fardaste para a nossa “peladinha”, esta não dá para aceitar...
– E o que mais querem? Já fiz a fogueira, então eu fora, vocês podem pular e se queimar à vontade! – Quando abro a boca tenho que sair da frente para não ser atingido.

Um quarto de século após, participava da organização de uma entidade de classe em que se colocava em pauta o lançamento de uma revista técnica. Julgando-me o menos ceguinho de todos os companheiros presentes, com um pouquinho mais de conhecimento de causa, resolvi abrir o bico para deixa-los perplexos com a opinião repleta de detalhes desconhecidos pela maioria. Afinal valia-me de minha experiência como gerente de jornal do interior, onde coloquei em prática noções empíricas de redação, revisão, diagramação e composição do meio em que me criara.
Tão convincente em meus argumentos, recebi de surpresa a chamada do presidente dessa associação – "Quem sabe te encarregas da direção da revista!" – mais um desafio ocasionado pela indiscrição oral. Ainda tentei expor a necessidade de se montar uma estrutura mais aparelhada com jornalista responsável, captação de publicidade, conselho editorial, distribuição e outras coisas mais. Mas aquele dirigente estava a fim de me colocar contra a parede, prometendo-me todo apoio logístico para implantar e levar adiante todas as metas do projeto, amparado num seminário nacional.
Precariamente, é bem verdade, conseguimos editar aquela publicação que foi alvo de um lançamento festivo, contando com o comparecimento de grande número de profissionais liberais, além de conceituados comunicadores, um deles isolado num canto do salão, chamava atenção, o que me levou a dirigir-lhe a palavra:
– Muito prazer, Senhor Fulano de Tal, admiro seu trabalho jornalístico.
– Agradeço o elogio, embora não seja a mim Beltrano objeto de merecimento. 
– Desculpe a confusão. – E sai de fininho para não provocar mais mal-entendidos...

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

"SEU" CONCORDINO - BARBEIRO PRAGMÁTICO


– Bom dia, “cumpanheiro” Concordino!
– Há quanto tempo, “cumpanheiro” Olívio? – ele não se constrangia de se misturar com a “cumpanheirada”.
“Seu” Concordino trabalhava numa barbearia do Conjunto Nacional em Brasília, bem ali em frente à Lancheria do Bund’s, e apavorava seus colegas cabeleireiros do salão com a imensa fila de clientes que declinavam de ser atendidos por outros profissionais que não fossem o próprio. Emérito contador de histórias, seus concorrentes não acreditavam que ele não preparasse em casa o repertório de causos para narrar à freguesia, sempre renovado dia a dia e apreciado com sofreguidão até mesmo por aqueles ocupantes de outras cadeiras mais disponíveis.
Pois “seu” Concordino tinha uma estratégia para cativar a clientela, consistindo em sondar inicialmente cada novo atendimento, jamais falando mal de quem quer que fosse e procurando - isto sim - exaltar as qualidades de quem estivesse na berlinda. E não se furtava a qualquer papo, dando uma de entendido no assunto a que fosse solicitado. Sua cultura inútil era inesgotável, corria em todas as raias, traçando política, religião, futebol, novela e todo tipo de música que tocava nas rádios. Até sabia de cor a escalação do selecionado da Polônia para gáudio dos “polacos” que ali apareciam...
De vez em quando, eu chegava por lá, meio apressado para afeitar a barba e não me importava de ser convidado pelo primeiro atendente a postos, ficando na escuta da prosa falada de “seu” Concordino, meio desconfiado daquele seu jeito de nunca sair “de cima do muro”:
– E como é, o Corintians, hein? – tirava a temperatura do novato.
– Vai cair do G-4... – o outro já dava indícios de que não era alvinegro.
– Hum, será que não vai disputar a Libertadores do ano que vem?
E eu saía de lá intrigado com aquela conversinha mole, disposto a voltar nesse Salão para entender melhor a figura de “seu” Concordino. Noutro dia, estive no pedaço para desbastar as melenas e não deixei de prestar atenção nos rodeios da peça:
– E que me diz da cassação do Cunha? – ele sempre puxava o assunto.
– Merecida, recebendo propina à custa do dinheiro público... – este replicava.
– Não foi ele que “impinchou” a Dilma?
Foi o que bastou para que seu interlocutor desse um salto na cadeira e, para acalmá-lo, Concordino tirou do aparador uma das placas escondidas – È GOLPE!
Logo depois chegou a vez de um cidadão com pinta de religioso e “seu” Concordino resolve fazer as honras da casa, saudando-o:
– “Fora de Cristo não há salvação!”
– "Alá esteja convosco" - responde um muçulmano.
– Precisamos acreditar em nossos profetas, não é? – ele fazia média.
Até que um dia, decidi testar minha paciência, enfrentando aquela fila vagarosa para ser atendido por “seu” Concordino, sem deixar que ele tomasse a iniciativa do papo. Em seguida, provoquei-o:
– Amigo, que democracia é esta com um Congresso cheio de palhaços? Mil vezes o antigo regime militar para conter essas ondas de greves e arruaças!
– Sabe que você tem razão... – retruca Concordino, mostrando a outra placa que tinha no aparador – IMPEACHEMENT JÁ!
– Ah, essa não, “seu” Concordino, outro dia vi você se manifestando contra o golpe, afinal qual das placas você prefere?
– E você acha que eu sou louco para fazer inimizades, discordando ou discutindo com aqueles que me dão sustento? Enquanto nós brigamos aqui na planície, os barões se entendem e terminam abraçados lá em cima...
E assim acabei descobrindo a faceta pragmática daquela ambígua pessoa.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

"EU QUERO APLAUDIR" - A ALIENAÇÃO GERAL

Confetes à parte, constranjo-me em revelar que tempos atrás apresentei um anteprojeto de estatutos para a Associação de Funcionários, da qual era um dos integrantes. Premissa básica: tornar esta entidade mais representativa dos empregados junto a Direção do estabelecimento a que prestávamos serviços. A partir daí constituir uma Diretoria mais atuante e eleita através de uma chapa constituída de elementos realmente comprometidos com uma atuação conjunta, ao invés de se eleger um único Presidente para que este nomeasse a posteriori seus colaboradores.
Na ocasião, chamava-me atenção o recém-lançado modelo gestor do Grêmio F. B. Porto Alegrense, cuja Diretoria se compunha de várias Vice-Presidências especializadas e autônomas que eram coordenadas pelo Presidente e dirigente máximo, ao qual deveriam ser submetidos para aprovação os planos daqueles seus colaboradores. Assim, ao invés de se formar a chapa tradicional de Presidente, Secretário e Tesoureiro, estes dariam lugar a Vice-Presidências Financeira, Administrativa, Patrimonial, Cultural, Comercial, Social, Esportiva, responsáveis por suas respectivas áreas de atuação.
Submetido a uma Comissão, foi elaborado o projeto final, implantado e depois alterado para que voltasse a ser apenas recreativa a referida Associação. Porém, permanece até hoje a filosofia que descartava a figura do abnegado carregador de piano e concentrador de decisões daquele Presidente de épocas passadas. Apesar de que nos dias atuais essa entidade de classe ainda se ressente da renovação de seus quadros dirigentes, o que obriga a que se perpetuem determinados grupos na administração, os quais acabam se deteriorando e colocando em risco a própria sobrevivência da agremiação.
Idênticas dificuldades acontecem nas reuniões para eleição de síndicos nos edifícios, em que muitos condôminos se eximem de assumir sua parcela de responsabilidades em prol do bem estar coletivo. Parece que vivemos um tempo de acomodados que só pensam em seus direitos, esquecendo que têm deveres a cumprir na própria comunidade. Figurinhas decorativas em cargos que jamais serão exercidos, julgam-se isentos de obrigações por emprestarem graciosamente seus nomes para justificar uma pseudo-organização. Eis que surge o polivalente, concentrando tarefas que não lhes dizem respeito.
Em outras oportunidades, participei de comissões para organização de almoços e jantares festivos, encarregando-me de contatar pessoas interessadas em confirmar sua presença nesses eventos com a devida antecedência. Era importante fazer uma estimativa exata do número de adesões para que se providenciasse a contratação dos serviços de atendimento nos restaurantes sondados. Terrivelmente frustrantes foram minhas experiências nessa área, de vez que os elementos contatados raramente tinham uma decisão pronta e nunca me avisavam do que tinham resolvido.
Para dar uma ideia dessa balbúrdia, certa feita, obtive apenas 20 confirmações e, como eram poucas, terminei contratando o serviço para 60 pessoas.  E não é que me aparecem 120 interessados, obrigando em pleno domingo o ecônomo da sociedade que nos acolhia a buscar o fornecedor da alimentação na própria residência para adquirir o que necessitava para completar aquilo que faltava! Dessa forma, teve de improvisar seu atendimento em duas rodadas, sem contar com a compreensão daqueles que foram preteridos, os quais protestavam batendo talheres nos pratos, em barulheira infernal...
Poucos meses depois, nova reunião de confrades e somente 20 se manifestaram favoráveis. Mesma estimativa anterior, apenas contratei 60 talheres e desta feita apenas 40 estiveram presentes, tendo de assumir o prejuízo do excesso no previsto. Ainda procurei conscientizar todos os confrades, explicando essas faltas de comunicação que nos angustiavam ante prováveis insucessos para o bom desempenho no recebimento a todos convidados, mas esta providência resultou infrutífera. Gato escaldado, larguei de mão toda e qualquer futura atividade em benefício daquela confraria.
Décadas atrás, “Eu Quero Aplaudir” era um quadro humorístico da nossa televisão que bem representava a alienação dessa gente irresponsável e postulante da lei da vantagem, a qual não leva em conta a mínima colaboração com nosso esforço dispendido.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

JACQUELINE AISENMAN - MEDALHA DE OURO

Em 7 de fevereiro de 2008, postei matéria sob o título Agilmar Machado levanta taça no Carnaval de Laguna/SC, que foi objeto de comentário de Jacqueline Bulos Aisenman nos seguintes termos: “Um prazer descobrir este blog, principalmente através de um texto que fala de pessoa tão especial como Agilmar Machado, um ícone para todos sul-catarinenses, com sua memória de jornalista impagável e sua irreverente pena. Com certeza, voltarei! Abraços, Jacqueline”.
Seguiu-se então Agilmar intervindo nas apresentações: “Amigo JA: A Jacqueline, autora do primeiro comentário, merece uma identificação. Trata-se de uma lagunense arraigada às coisas de sua terra, jornalista e intimamente ligada às artes como seu pai, o saudoso Amigo, jornalista, pintor e escritor, Richard Calil Bulos. Foram também meus amigos muito próximos seu avô, Doutor Abelardo, primor de cidadão, bem como seu tio, Armando, nosso sempre lembrado tribuno e parlamentar. O casal Jacque e Paulo residem na Suíça (terra de sua avó paterna) desde 1990. É de lá que ela conta com uma plêiade de amigos daqui para levar adiante seu benemérito propósito de enaltecer sua terra natal. CORACIONAL é seu primoroso site, no qual fui bondosamente acolhido por ela e pelo Paulo. Grato, Jacque, pelas tuas referências tão generosas como sempre. Ao JÁ, mais um abraço (dos cinco ou seis já “remetidos” hoje!). Agilmar”.
Essa repercussão me levou a postar, em 10/02/2008, Navegando pela rota de PortoAlegre a Genebra com escala em Laguna, em que agradecia a honrosa deferência da aproximação com aqueles amigos. Entre os comentários recebidos Agilmar disse “BONITO, MEU IRMÃO!!! JÁ ESTÁS COM O CORAÇÃO EM JAGUARÃO, POA, LAGUNA, FLORIPA E GENEBRA (SUIÇA)! ALÉM DA SENSIBILIDADE, CORAÇÃO DE POETA TEM ASAS... ABRAÇÃO, Agilmar”. E Jacqueline disse “Muito obrigada por suas palavras. Que texto lindo, palavras sentidas uma a uma, saídas do coração diretamente para esta página, viajando continentes e atingindo aqui o profundo dos meus sentimentos. Parabéns, jornalista! Abraços, Jacqueline”.
Devo reconhecer nessa ilustre dama como a primeira seguidora desse nosso blog, correspondendo-me a grata satisfação de acompanhar o seu precioso CORACIONAL, onde digitei numa quadrinha a opinião sobre uma das telas de sua autoria Natureza Morta, ao que Jacqueline me convidou “Vem, poeta, vem para o Varal!”. Nessa ocasião, ela estava lançando um novo e ambicioso projeto de agregar autores lusófonos na Revista Eletrônica Varal do Brasil, na qual foram generosamente acolhidas as humildes colaborações de nossa lavra. Inclusive chegamos a levantar 1º lugar na categoria crônica com “O velho chateau daqueles rapazes de antigamente”, no II Prêmio Literário promovido por aquela publicação editada em Genebra/Suíça.
Um Comunicado Importante está chegando ao conhecimento de todos apreciadores das iniciativas do Varal do Brasil, através do qual é informado o encerramento das atividades dessa Associação Cultural, responsável pela divulgação de tantos autores da comunidade lusófona mundial e grande incentivadora daqueles que costumam escrever para as gavetas, atendendo sua necessidade de se comunicar com os leitores espalhados pelos nichos que se criaram através de uma “literatura sem frescura”. Ali essa jornalista se definia como a “mulher-orquestra” – para nós uma quixotesca criatura - que sempre extrapolou graciosamente seus limites de solitária organizadora de um plano carente de aportes financeiros necessários ã sobrevivência. 
Jaqueline Bulos Aisenman há de se sentir como aquela “tia” dum orfanato que tem de lidar com a “chantagem” de inúmeras crianças solicitando-lhe um carinho único e que tem de se desdobrar para contentar a todos, ficando frustrada quando não o consegue. Seus diletos “sobrinhos” estão ai para testemunhar todo seu hercúleo esforço...

quinta-feira, 28 de julho de 2016

HORIZONTES DO MEU UNIVERSO PARTICULAR

O pior bolicho do mundo, o homem que se esconde em si mesmo, a hospitalidade campeira, as frustradas tertúlias em volta do fogo de chão, as desventuras do Tigre (o bravo cachorro que os acompanhou)retrata bem certo espírito indômito através do relato “Terra Adentro” de Luiz Sérgio Metz, Pedro Luiz da Silveira Osório e Tau Golin, três jornalistas gaúchos que empreenderam uma jornada em lombos equinos, saindo de Santa Maria até chegar a Jaguarão, treze dias após percorrerem árduas trilhas desse pedaço do território sul-rio-grandense.
Confesso que tenho certa inveja de minha sobrinha Ana Lecy Souza Pacheco pelo tipo de atividade que exerce. Como funcionária da Emater, ela percorre nosso município, prestando assistência técnica a vários estabelecimentos rurais. Não tem dia nem hora para colocar o pé na estrada e se enveredar campo afora, não importa como esteja o tempo, faça chuva ou faça sol. E lá se vai ela pelos caminhos empoeirados ou então tirando “peludo” em vias enlameadas, cruzando arroios e abrindo porteiras para se extasiar com a fantástica paisagem dos cerros ondulantes.
Enquanto outros acumulam milhas nas andanças por outras paragens exóticas, ilustrando-se com uma cultura global a fim de se tornarem cidadãos do mundo, eu me contentaria em chegar até algum boteco na beira da estrada para adquirir conhecimento intuitivo com os frequentadores do local. “Apeie, vivente, e venha tomar um mate conosco” – uma saudação rica de acolhida, sem dúvida alguma me deixaria realizado na intenção de ampliar os horizontes do meu universo pessoal e satisfeito a contemplar um infinito de tempo e espaço desconhecido.
Em São Paulo, tive oportunidade de conhecer uma estrada secundária para Itu, atravessando o carro de balsa pela represa de Guarapiranga, passando por Bom Jesus de Pirapora e retornando por Campinas. Também cheguei a me atrair pela permanente nebulosidade de Paranapiacaba, estação da Santos-Jundiaí, a que me arrisquei, motorizado, subir a serra a partir de Mauá com pouca gasolina no tanque e sem saber da inexistência de postos de abastecimento nas redondezas. Mesmo assim consegui um garrafão de 5 litros retirado do estoque de combustível  no único empório do povoado.
Durante certo tempo, a ladeira da Rua João Carvalho, no bairro Agronômica, foi meu endereço residencial em Florianópolis-SC. O relevo dessa capital é rico de aclives e declives que não impedem sua escalada imobiliária avançando nas encostas dos morros, casarios e escadarias nas mais inóspitas localizações. Assim, não consegui conter minha curiosidade de saber o que existia no fim daquela rua, decidindo-me a subir lomba acima e chegando até o fim do calçamento. Dali em diante, apenas seguia uma vereda rudimentar a perder de vista, o que me fez desistir dessa incursão.
Também em Florianópolis, andei fazendo diversas travessias pela Ponte Hercílio Luz no trajeto da Ilha para Capoeiras e vice-versa. Para lá levamos uma “alemãzinha” de Três Riachos, distrito de Biguaçu-SC, a fim de ajudar nos serviços de casa, comprometendo-nos a deixá-la com seus familiares de sábado a domingo, quando iríamos busca-la. Ela descia do carro no fim da estradinha que terminava próximo ao mercado existente na região e seguia por uma trilha que a gente não sabia aonde ia dar. Até que um dia um colega se dispôs a acompanha-la para apanhar um passarinho e se arrependeu amargamente, depois de uma longa caminhada pelos morros cerrados.
Aquele mercado era uma espécie de “centrinho” de Três Riachos e que se enchia de gente toda vez que lá chegávamos e, numa das voltas, esperava-nos, junto com a filha, a mãe para reclamar sem qualquer discrição estar a menina passando fome lá em casa, pois não servíamos pirão, o prato predileto dela. Assim, oferecia-nos um saco de farinha de mandioca para engrossar nossa alimentação. Ali mesmo provamos a qualidade do produto caseiro de um branco puro, gostoso de ingerir até mesmo cru, vindo a se adicionar em nossos hábitos alimentares com aprovação de toda família.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

JUSTO NAQUELE DIA, TANTAS TRAPALHADAS!

Justo naquele dia, em que o amigo Milton e eu resolvemos dar um giro pelas casas noturnas de nossa preferência, tinha de acontecer aqueles fatos inusitados. Logradouros mal iluminados, de repente nos vimos no centro de uma confusão danada, cercados pelos brigadianos na quadra fechada. Milton, com os braços levantados, pedia para que eu parasse. Surdo, segui caminhando em direção àqueles dois vultos que gritavam alguns metros na minha frente, até sentir uma carabina encostada em meu peito e entender o que eles queriam: “Não se mexa, fique onde está!”
Justo naquele dia, o técnico alemão que trabalhava em sondagem de petróleo na localidade, depois de encher a cara de tanta cerveja com soda limonada – se queixava do amargor da nossa bebida –, inventou de apedrejar os vidros das casas com “luz vermelha” nas portas, provocando todo aquele aparato policial, além de algum casal clandestino se valer de saídas de emergência... E eu por pouco não fui acusado daquela “germânica” esculhambação para ser submetido a maiores interrogatórios, graças à interferência de Milton convencendo os guardas de minha deficiência auditiva.
Justo naquele dia, ainda tivemos coragem de chegar à casa de “Tia Margarita”, quando Marlene deu para se engraçar comigo na frente de Pedrão, estivador no caís do porto e “dono do pedaço”, de quem tinha se afastado por desentendimento amoroso. Mal enxergou seu brutamonte ali chegando, jogou toda sua robustez amassando meu colo franzino e tentando despeitá-lo: “Viu só? Já estou com homem novo...” Eu tentava me desvencilhar e aquela abundância me lambuzava com o batom exagerado de seus lábios: “Eu fora, não tenho nada que ver com isso” – enquanto Mister Músculo cerrava os punhos, dizendo para eu fazer bom proveito.
Justo naquele dia, entrei madrugada adentro, detido por Marlene em seu quarto, invejando Milton que tinha se retirado mais cedo. Porém, não me demorei muito e logo consegui escapar das garras daquela “matrona”, saindo para a rua apressado e temendo alguma represália por parte do rival descartado. Assim, colocava à prova minha regra de evitar qualquer confronto e manter distância de indivíduos mais avantajados fisicamente. Acredito que meu anjo da guarda fez um bom trabalho, conduzindo-me são e salvo, apesar dos sobressaltos da jornada.
Justo naquele dia, nem sei onde estava com a cabeça para enfrentar tantas adversidades. Bem que podia continuar enfiado no salão de sinuca, bebericando e enchendo os pulmões com a fumaça dos cigarros acesos. Afinal, estava me divertindo com as discussões acaloradas dos inconformados perdedores, eu mesmo arriscando algumas tacadas sem capricho em inocente passatempo. Depois era só pagar a conta dos minutos gastos e sair incólume por onde entrara. Mas tinha que falar mais alto o notívago inveterado, querendo esticar o tempo ocioso...
Justo naquele dia, tive oportunidade de consolidar uma forma de conduta que valoriza o respeito mútuo e as diferenças, evitando as reações intempestivas. E até agora, tenho me valido dessa mansidão para colher os efeitos desejados por minha vontade. Desde então, é que esse fato veio a ficar indelevelmente marcado e, sempre que posso, procuro compartilhar a lição aprendida com outros mais próximos e necessitados deste modesto modo de pensar, como veio a ocorrer anos mais tarde com um velho conhecido.
Justo naquele dia, surgiu a mensagem que se ajustaria futuramente para advertir certo cidadão idoso e metido a conquistador que estava a fim de assediar uma senhora presente no almoço em que estávamos juntos:
- “Olha só que linda aquela “coroa”, vou lá falar com ela...” – e eu lhe preveni:
- “Não vai não, "seu" Chico, que o marido dela é atleta de luta livre”. E mesmo assim, ele nem se convenceu, tinha outras convicções e me retrucou, batendo pé:
- “Pode ser lutador, mas não quer dizer que deva estar ‘descalcificado’!”

segunda-feira, 11 de julho de 2016

DE BILHETEIROS E SUA SORTE "MUI" GRANDE

O simpático Buré e seus craques navegantinos.

Don Ramón trabalhava na Aduana uruguaia da Ponte Internacional Mauá (Rio Branco) e, ao que me consta, tinha seus “bicos” como agente do magazine London Paris, de Montevidéu, capital daquele país vizinho. Como tal, costumava ir até Jaguarão, no lado brasileiro, para repassar o volumoso catálogo daquela conceituada casa comercial a meu tio Cantalício Resem. Para mim, menino ainda, era uma tentação folhear as páginas da esmerada publicação, sem exigir aquisição de qualquer produto ali exposto, cuja encomenda era decidida por quem dispunha dos recursos necessários.
Pois este catálogo e mais as figurinhas do chocolate Águila, então adquirido “allá de la puente”, ainda permanecem fixados nas recordações duma longínqua infância. Lembro ainda que Don Ramón era irmão de cor e sangue de Frederico, que morava e vendia bilhetes de loteria em nossa cidade. Ambos negros elegantes bem vestidos, mas que se distinguiam falando cada qual o idioma da localidade em que residiam, já que seriam “hermanos” apartados por duas pátrias com um mesmo berço de origem – o que bem caracterizava o nosso amálgama fronteiriço.
E assim me esforço para trazer a mente outros bilheteiros como a admirável figura humana do saudoso Buré, deficiente físico com defeito em ambos os pés e dificuldades na fala, mas com uma notável capacidade de superação. Buré morava bem longe, lá pelos subúrbios da capela São Luiz, e se deslocava de pés descalços até a zona central de Jaguarão, sem recursos na época para usar sapatos especiais. Torcedor fanático do Navegante Esporte Clube, insinuava-se pelas mesas do Café do Comércio, sempre bem recebido e generosamente aquinhoado com o troco do cafezinho.
Fui-me da querência e andei por outros rincões, sem que deixasse de chegar inúmeras vezes por lá para rever amigos e parentes. E Buré que ali ficou, quando me enxergava sempre tinha seu bilhete com a saudação cordial, enquanto eu notava uma transformação gradual em sua vestimenta e aspecto físico, alcançando almejado par de sapatos, além de roupas limpas e chapéu que lhe garantiam uma melhor qualidade de vida. Como resultado da profícua e honesta atividade que exercia.
Remexendo no subconsciente, surge-me uma época em que frequentava a casa de meu primo Anysio de Souza Resem, vizinho da residência e oficina mecânica de Cláudio “Sheda” de Freitas, ali fazendo amizade com a turma vizinha que me acolheu na esplanada das figueiras de trás do Mercado Público, onde o pessoal corria atrás de uma bolinha de meia, muito bem tratada por um negrinho franzino, conhecido por Hiria, abusando de dribles desconcertantes. Paulinho e Adão, da família do “Sheda” e mais Ercio Gentil eram outros companheiros inesquecíveis.
O “campinho” se situava entre a Usina Elétrica e o Mercado, no início da Rua 27 de Janeiro e, na outra rua paralela, XV de Novembro, havia um amplo largo totalmente desocupado até começarem as obras de construção da Capitania dos Portos. Cercada de tapumes, que a gente dava jeito de invadir para dar vazão às travessuras imaginadas num esconderijo das vistas de qualquer passante na Avenida 20 de Setembro (Beira Rio), propício para assombrar algumas pessoas inadvertidas nas horas mais sossegadas. Para dar o tom de alma penada, eu ainda arranhava na gaitinha de boca.
Numa dessas ocasiões, circulava ali na Beira Rio o bilheteiro castelhano Marrecão, baixote e troncudo, buscando algum cliente para acenar com a sorte grande. Não deu outra – na linha de frente, a artilharia de estilingues se preparou e lançou as bolinhas de cinamomo (paraíso), pegando em cheio o incauto que logo se virou para ver de onde vinha aquela saraivada. Intrigado, aceitou a trégua e seguiu seu caminho. Ai resolvi soprar a gaitinha para assistir os companheiros correndo de um lado para outro, o que me obrigou a seguir atrás até me topar com Marrecão adentrando o recinto. Não chegou agarrar nenhum de nós, mas não deixou de dar queixa ao Sheda e, a partir do dia seguinte, este colocou seus guris no batente da oficina e ponto final em nossa diversão.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Como seria defendido Qorpo Santo em dias atuais

"José Joaquim de Campos Leão, autonomeado Qorpo-Santo, meu cliente, comprovadamente é um homem de intelecto elevado a tal ponto que pode ser confundido com loucura. Ademais, a autora do processo, Sr.ª Inácia de Campos Leão, aparenta desimportar-se com o bem-estar do marido, atribuindo maior relevância e consideração aos bens de meu cliente em detrimento da liberdade deste.
Qorpo-Santo demonstra capacidade plena para exercer todos os deveres e direitos da vida civil e, apesar de seus hábitos peculiares, jamais apresentou qualquer risco à sociedade. Sendo assim, é possível evidenciar o total descabimento deste pedido de interdição.
Os fatos anteriores, apresentados pelos testemunhos de Juvêncio, fiel criado de Qorpo-Santo, e Eusébio, amigo próximo do réu, servem apenas para ratificar a sanidade de José Joaquim de Campos Leão perante a comunidade.
Se, em algum momento, seu comportamento possa ter levado qualquer pessoa a crer na loucura de meu cliente, talvez tenha sido pela discrepância de suas ações. Quando um homem teme por sua segurança e não tem outro meio de defendê-la, o melhor que pode fazer é trancafiar-se em sua própria casa, cenário em que Qorpo-Santo decidiu tornar uma janela sua porta de entrada e saída.
Quanto aos delírios que tanto Inácia quanto Juvêncio afirmam ter presenciado podem ser tratados por um psiquiatra capaz em sua função, não havendo necessidade de internar um homem plenamente apto a viver em sociedade."

terça-feira, 28 de junho de 2016

A RÉPLICA EPISTOLOGRÁFICA DE "GAROEIRO"

NOVENOS MÚLTIPLOS

Caríssimo Souza,

Maravilha! Pelo visto, todo o mundo estava ansioso por sua volta, alimentando o Blog do Poeta das Águas Doces com essa sua indispensável energia positiva!
Parabéns, mais uma vez!
Gostei dos seus "novenos múltiplos"! Ficaria imensamente realizado se, de fato, nos nove anos seguintes, o Poeta das Águas Doces pudesse se fazer cada vez mais presente e mais criativo, brindando aos Leitores com "causos", crônicas, contos, e, principalmente, poemas!
Como você sabe, certamente, a estrutura interna do sistema numérico decimal, em consequência da valoração posicional, contém inúmeras propriedades, sendo uma delas, essa que você comenta, a divisibilidade de um número, por nove.
"Um número será divisível por nove, se a soma dos dígitos que o compõem, for divisível por 9".
Em parte de seu bom exemplo, verifica-se que 2016, com: 2 + 0 + 1 + 6 = 9, soma, essa, que dividida por nove, é igual a 1, assegura validade à propriedade, c.q.d. ...
O melhor, no entanto, é a possibilidade de que tal propriedade possa ser associada ao nosso desempenho existencial e social, que não deve ser tido como algo "alucinatório", pois, há mais, muito mais, entre o céu e a Terra, do que o pensamento alcança...
Gostei, muito, desse seu retorno!
Abraço,
Garoeiro