segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A HONRAR OS PROFESSORES DO JULINHO (III)

Prédio atual do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, inaugurado em 1958, situado na Praça Piratini.

1958, ano da conquista do primeiro campeonato mundial de futebol pelo Brasil, do qual acompanhamos uma das partidas através de um rádio de válvulas, tipo capela, introduzido na sala de aula por um dos colegas. Foi o ano em que cursávamos o 3º Científico, sendo iniciados nos segredos das integrais e derivadas pelo professor Mello. Paraibano se não me falha a memória, aparecia sempre em aula com sua gravatinha de tope vermelha, trajando um casaco de lã verde. Enchia o quadro negro de equações, demonstrando teoremas matemáticos e ia apagando o que já estava escrito sem dar tempo para a gente copiar. O apagador saturava-se de pó de giz e não dava conta da sua função. Para não gastar alguns minutos batendo e tirando aquele pó, muitas vezes o mestre utilizava a própria manga do casaco para limpar os borrões no quadro negro. Era um sufoco danado para a turma.
Um belo dia, antes de o professor entrar em aula, o colega Mauro Knijnik propôs para a turma:
– Hoje não vamos deixar Mello dar aula –. Em seguida, o mestre chegou e ia abrir o livro de chamada, quando Mauro, com aquela cara de pau o interrompeu:
– Dá licença, professor?
– Pois não.
– Professor Mello, hoje nós gostaríamos de homenageá-lo e a turma me incumbiu de passar às suas mãos uma pequena lembrança, “singela, porém sincera”, em que todos se cotizaram para sua aquisição.
Mauro, então, entregou uma caixinha enrolada para presente, àquele mestre. O professor Mello, surpreso, cortou a fita, desenrolou o papel e deu de cara com um isqueiro metálico em aço inoxidável, tipo “zip”, muito em voga na ocasião. Aí não conteve mais sua emoção e improvisou o agradecimento, dizendo da importância daquele gesto, não pelo valor econômico do objeto, mas sim pelo valor simbólico que representava. Então, desfiou para todos nós a miséria e a subnutrição dos seus tempos de roça, a alfabetização retardada, sua condição de migrante nordestino, autodidata, enfim sua luta pela sobrevivência. A turma o ouviu embasbacada e, ao final, aplaudiu-o, todos de pé. Entre cumprimentos e abraços, havíamos perdido uma aula de Matemática, mas ganhávamos uma inesquecível lição de vida.

Educação Física, praticávamos no Estádio Ramiro Souto, no Parque da Redenção. Eu era uma nulidade em matéria de esportes. Nas partidas de voleibol, era sempre o último a ser escolhido para compor as equipes. Certa ocasião, minha equipe levava um vareio do adversário, quando o pessoal interrompeu a contenda, reclamando que eu desequilibrava o jogo para os outros. A equipe adversária aceitou me trocar pelo pior dos seus integrantes. Passei para o outro lado da rede e, logo em seguida, o juiz deu rotação para o meu novo time, competindo-me a vez de dar o saque. Atirei do jeito que pude e a bola foi dar bem atrás dos outros jogadores, dentro da quadra, quase em cima da risca. Ponto! E assim se sucederam outras rotações até que tive de dar novo saque. Estava com medo de errar, mas não me permitiram a substituição. Saquei e, de novo, marquei ponto. Os companheiros do outro lado não se contiveram:
– Jaguarão, seu sacana, tinhas que sair daqui para acertar saque do lado de lá.
Paulinho era nosso professor, gente finíssima, amigo dos alunos, pena que me tenha treinado quando já atingia a idade para ser dispensado daqueles exercícios. Prova de salto à distância: eu vinha correndo, chegava na risca e dava um passo. Paulinho notou minha dificuldade, chamou-me de lado e me explicou com noções elementares de Física: “vai lá correndo e dá uma estocada com os dois pés em cima da risca; a força da inércia vai te jogar longe”. Não deu outra: superei de primeira a marca mínima para aprovação. Também no saldo em altura, quando insisti para pular a partir do nível mais baixo da barra sem conseguir, ele reparou na minha maneira equivocada. Novamente, orientou-me para que eu procurasse correr na diagonal, chegando perto que eu levantasse uma das pernas e desse impulso com a outra. Assim, venci meu bloqueio daqueles sessenta centímetros e fui saltando até atingir 1m30cn para aprovação, dando-me por satisfeito. Até pouco tempo atrás, ainda mexia com ele: se me treinasse mais, acredito que me tornaria um atleta razoável.
Eis ai meu depoimento como figurante desta produção que marca a história dos 100 anos do nosso querido Julinho.

(in "Julinho 100 Anos de História"/ Org. Otavio Rojas Lima e Paulo Flávio Ledur. - P. Alegre: AGE, 2000).

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A HONRAR: OS PROFESSORES DO JULINHO (II)

Prédio antigo do "Julinho", na Avenida João Pessoa, destruído por um incêndio em 1951

Fevereiro de 1956. As férias perdidas, ocupei-me durante todo o tempo a decifrar o enigma da Química Inorgânica, reservando alguns dias antes de começar os exames de segunda época para fazer uma revisão na matéria de Geografia. O professor Procópio Mariath foi quem formulou as questões de Química. Dominando o assunto, consegui minha aprovação com nota nove. Faltava, no entanto, acertar as contas com Dona Geografia para conseguir ingresso no segundo ano. E, como havia subestimado mais essa preparação, não logrei alcançar meu intento.
Diante desses resultados, busquei uma nova matrícula no 1º ano Científico. Na Secretaria do Colégio, informaram-me então que as inscrições já estavam encerradas desde dezembro do ano anterior. Tentei argumentar que, naquela data, ainda dependia de novos exames para saber em que série deveria estudar. A atendente me falou, na ocasião, da matrícula condicional que eu desconhecia e me sugeriu que encaminhasse à Direção aquele meu pleito. Recebeu-me a professora Mery Fagundes, de quem eu fora aluno de Espanhol. Expus a ela todo o equívoco causado pela inexperiência de jovem interiorano, desorientado na Capital. Depois que me ouviu, a Diretora achou que deveria levar ao Conselho o meu caso: seria difícil, não poderia prometer nada, que eu a procurasse daí a dois ou três dias. Decorrido o período, saí no encalço da professora Mery; encontrei-a saindo da cantina, quando me relatou a decisão do Conselho: em consideração ao meu comportamento como aluno esforçado, houveram por bem abrir um precedente e aceitarem minha matrícula fora do prazo. Que eu não perdesse tempo, passassse logo na Secretaria e acertasse tudo.
A repetência me proporcionou excelente oportunidade de consolidar o aprendizado precário do ano anterior e me deu mais segurança para assimilar os conhecimentos posteriores: meu desempenho escolar melhorou sensivelmente. Mais feliz ainda fiquei em continuar mais um ano como aluno de Espanhol da professora Mery. Os resultados foram tão estupendos que, antes de findar o ano letivo, a cara mestra me chamou para comunicar que, junto com outros dois colegas, estava concorrendo a uma bolsa de estudos patrocinada pelo Consulado de Espanha e que, até aquele momento, liderava a disputa, dependendo apenas dos exames finais para vencer a corrida.
A preparação das provas era árdua e nos exigia imenso esforço, com o que a gente ia cansando à medida que avançava nos exames realizados. Espanhol era uma das últimas provas, se não a última. Já estava com boa média e não precisava me empenhar; daí uma nota razoável, sem brilho, resultado que me tocou, como prêmio de consolação, o livro “Garcia Lorca”, de Edgard Cavalheiro, ofertado pela Companhia Editora Nacional. 
Os bico-de-pato da Engenharia
A professora Mery colecionava chapéus de calouros universitários, seus ex-alunos. A fim de resgatar uma grande dívida de gratidão, levei-lhe meu bico-de-pato da Engenharia,

Baixo e magro era o Pinto Lima, professor de Geografia da nossa turma. Naquela época, ele costumava gravar as suas aulas e as reproduzia para a classe. Creio que deveria utilizar um gravador portátil de fita de rolo. Apenas escutávamos aquelas suas lições, através da voz metálica do aparelho, na primeira metade do período, após o que ele costumava escrever no quadro negro um resumo daqueles pontos. No primeiro semestre, comecei a empilhar notas 10 em todas as sabatinas, inclusive no exame do meio do ano. Entusiasmei-me de tal modo que decidi me laurear em Geografia, essa megera que me deu rasteira no ano anterior. E o negócio continuou indo bem até a última sabatina do ano, quando alcancei um nove. Eram dez questões que as respondi todas, com exceção de uma por não constar em meus apontamentos, os quais tinha todos na ponta da língua. Fui reclamar ao professor Pinto Lima que aquela questão não havia sido abordada em aula. Ele consultou o livro de chamada e lá estava anotada a matéria completa. Retruquei-lhe que eu não havia perdido nenhuma das suas aulas, vinha anotando todos os pontos e tinha absoluta certeza de que fora omitido aquele assunto.  Teimoso, ele não deu o braço a torcer e até me disse que alguns colegas haviam respondido a dita questão. Achei por bem encerrar a discussão por ali mesmo, pois sabia que aqueles colegas costumavam faltar às aulas e haviam copiado o tal ponto de outra turma, na qual não fora omitido. Faltavam ainda algumas aulas para encerrar o ano letivo; deixei de frequentar as preleções desse descuidado mestre e, no exame final, apenas compareci para entregar a prova em branco, pois já tinha média suficiente para aprovação.

       (in "Julinho 100 Anos de História"/Org. O. R. Lima e P. F. Ledur. - P.Alegre : AGE, 2000).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

PARA HONRAR: PROFESSORES DO JULINHO (I)

Prédio do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, na Rua Riachuelo, em Porto Alegre.

Março de 1955. Primeira aula no Júlio de Castilhos, ali estava eu, um dos privilegiados que ingressara no educandário, valendo-se da condição de oriundo de ginásio estadual e, portanto, dispensado do exame de seleção para o curso Científico. Com problemas auditivos, escolhi uma das classes bem à frente. No estrado, sentado à mesa, o professor Magadan tinha acabado de fazer a chamada dos alunos; olhou para mim e me convocou para chegar ao quadro negro. Com ar enérgico, ordenou-me para traçar uma reta na horizontal, dispondo para tanto de uma régua. Depois, deu-me um compasso, para dividir ao meio a reta. A prova me era desconhecida e tentei resolvê-la com o compasso fechado, utilizando-o como unidade de medida: deu um compasso e mais uma parte que marquei a giz no mesmo. Aí, comecei a medir a palmo e a dedo o compasso... O mestre gritou: “pode parar por aí”. Em seguida, perguntou-me: “de onde você vem”? Respondi-lhe que de Jaguarão. A classe inteira caiu na gargalhada, um gaiato do fundo, exclamou:
– Aí, Jaguarão!
– Silêncio, vamos fazer silêncio! – Era o Magadan botando ordem na aula.
O pessoal então se aquietou para ouvi-lo falar:
– Eu posso chamar qualquer um de vocês aqui na frente e estou certo de que irão desempenhar bem pior do que este rapaz. Infelizmente, essa é a realidade do nosso sistema de ensino no Ginásio.
Porém, o estrago já estava feito: ganhei o apelido de Jaguarão, que tive de carregar durante todo o tempo em que estive no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e mais ainda na Escola de Engenharia da UFRGS, aliás, com muito orgulho.

Aquele meu primeiro ano no Júlio de Castilhos foi terrível como período de adaptação. Imensas dificuldades em Química e Física, aos trancos e barrancos nas demais matérias, com exceção de Desenho e Espanhol (era da Fronteira, tinha que dar banho), nas quais me destacava. O Julinho na época funcionava no prédio do Arquivo Público, na Rua Riachuelo, e tinha comunicação com os fundos do Teatro São Pedro.
As aulas à tarde eram de turmas masculinas e, de manhã, femininas. Bilhetinhos deixados nas classes, iniciavam-se romances. Às 13 horas, eram feitas as primeiras chamadas. No verão, aulas modorrentas, duras de suportar. O professor Athaualpa Ig Cibils, adepto da decoreba (para aprender Química tem que decorar), no primeiro período, pedia-nos um pouco de paciência para dar a matéria nos quinze minutos iniciais, reservando os restantes para uma sesta geral, que ele liderava no maior dos roncos.
Devo confessar que a Química Inorgânica não correspondia a todos os meus esforços: a única prova em que consegui alguma nota foi decorrente de uma questão sobre cálculo estequiométrico, álgebra pura, o meu campo; de resto, zero, zero e mais zeros. Fim de ano, lutava para defender a média que me possibilitaria a chance de uma segunda época. Já tinha rodado em Geografia, cada pontinho nas demais matérias era importantíssimo para atingir meu objetivo. No exame oral de Português, tive uma sorte tremenda: detive a estudar sobre a Língua Portuguesa no mundo, e este foi o ponto que me tocou para dissertar. E os três mestres, cada um com seu examinando, pararam a me escutar na explanação. A professora Idália, decepcionada com seus pupilos que me antecederam até aquele momento, dispensou-me então do seu exame, dizendo que acompanharia a média dos outros integrantes da banca, por sinal uma boa nota. E lá fui eu, dois ou três dias depois, enfrentar o oral de Química.
O mestre Athaualpa detestava desperdiçar suas férias num exame de segunda época. Assim, foi-me dando as suas indiretas para saber com quantos paus eu faria minha canoa. “Não tem jeito, professor, qualquer nota que me der, serve”. E ele insistindo até que lhe revelei – onze. “Mas como, seu cretino, e ainda tens coragem de  comparecer aqui; manda-te e vê se não aparece mais na minha frente”. Saí com o rabo entre as pernas. Quando as notas foram publicadas, verifiquei aquele meio ponto, para me arrasar mesmo.
Daí, passei a concentrar todos os meus esforços em Física, a última prova, a esperança derradeira. Joguei todas as minhas fichas nesse jogo. Terminado o exame, conseguimos com o professor Dillenburg para fazer a correção logo em seguida. Uma hora depois, abriu-se a porta da sala trancada e surge o mestre com um pedaço de papel na mão. “Deu, deu, deu, não deu, deu”... – ele informava se a nota necessária tinha sido alcançada ou não. A periódica 6,666... delimitava a minha linha fatídica e tinha dado, o que depois veio a ser confirmado na correção final – 6,67. Dessa forma, com média de 5,0006 garanti aquela segunda época. 

(in "Julinho 100 Anos de História"/Org. O. R. Lima e P. F. Ledur - P.Alegre: AGE, 2000).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

MENSAGEM PARA O "ARCANJO" RAFAEL PINTO

 
Evgeni Dobrovinski (Capa de uma plaqueta da Ode à Tipografia, de Pablo Neruda, 1977).


Batias bem o componedor na caixa dos tipos ao compasso duma melodia surgindo em tua cabeça, enquanto apareciam caracteres de todos os lados.

Mal sabias que, naquela dança animada, a cultura vinha aos borbotões, as palavras e linhas do texto se transformando em nascente pensamento.

Mesmo assim não te descuravas daqueles difíceis significados e interagias pelo ritmo de tua inspiração, em contraponto às rebuscadas frases.

Tuas mãos esculpiam uma harmonia perfeita da forma com o conteúdo, os dedos encardidos de artífice compondo a mais limpa das obras gráficas.

Eras Mestre em corrigir a ortografia nos descuidados originais e eu aquele Aprendiz a quem fazias sem querer pegar gosto pelo idioma pátrio.

Quando cochilavas à beira da bancada, oxalá teus sonhos pudessem alcançar a evolução da prensa de Gutenberg até a atual Era da Informática.

E assim me tornaste um escriba sem maiores pretensões do que jogar com as letrinhas como costumava fazer antigamente nos tipos de antimônio.