quinta-feira, 28 de julho de 2016

HORIZONTES DO MEU UNIVERSO PARTICULAR

O pior bolicho do mundo, o homem que se esconde em si mesmo, a hospitalidade campeira, as frustradas tertúlias em volta do fogo de chão, as desventuras do Tigre (o bravo cachorro que os acompanhou)retrata bem certo espírito indômito através do relato “Terra Adentro” de Luiz Sérgio Metz, Pedro Luiz da Silveira Osório e Tau Golin, três jornalistas gaúchos que empreenderam uma jornada em lombos equinos, saindo de Santa Maria até chegar a Jaguarão, treze dias após percorrerem árduas trilhas desse pedaço do território sul-rio-grandense.
Confesso que tenho certa inveja de minha sobrinha Ana Lecy Souza Pacheco pelo tipo de atividade que exerce. Como funcionária da Emater, ela percorre nosso município, prestando assistência técnica a vários estabelecimentos rurais. Não tem dia nem hora para colocar o pé na estrada e se enveredar campo afora, não importa como esteja o tempo, faça chuva ou faça sol. E lá se vai ela pelos caminhos empoeirados ou então tirando “peludo” em vias enlameadas, cruzando arroios e abrindo porteiras para se extasiar com a fantástica paisagem dos cerros ondulantes.
Enquanto outros acumulam milhas nas andanças por outras paragens exóticas, ilustrando-se com uma cultura global a fim de se tornarem cidadãos do mundo, eu me contentaria em chegar até algum boteco na beira da estrada para adquirir conhecimento intuitivo com os frequentadores do local. “Apeie, vivente, e venha tomar um mate conosco” – uma saudação rica de acolhida, sem dúvida alguma me deixaria realizado na intenção de ampliar os horizontes do meu universo pessoal e satisfeito a contemplar um infinito de tempo e espaço desconhecido.
Em São Paulo, tive oportunidade de conhecer uma estrada secundária para Itu, atravessando o carro de balsa pela represa de Guarapiranga, passando por Bom Jesus de Pirapora e retornando por Campinas. Também cheguei a me atrair pela permanente nebulosidade de Paranapiacaba, estação da Santos-Jundiaí, a que me arrisquei, motorizado, subir a serra a partir de Mauá com pouca gasolina no tanque e sem saber da inexistência de postos de abastecimento nas redondezas. Mesmo assim consegui um garrafão de 5 litros retirado do estoque de combustível  no único empório do povoado.
Durante certo tempo, a ladeira da Rua João Carvalho, no bairro Agronômica, foi meu endereço residencial em Florianópolis-SC. O relevo dessa capital é rico de aclives e declives que não impedem sua escalada imobiliária avançando nas encostas dos morros, casarios e escadarias nas mais inóspitas localizações. Assim, não consegui conter minha curiosidade de saber o que existia no fim daquela rua, decidindo-me a subir lomba acima e chegando até o fim do calçamento. Dali em diante, apenas seguia uma vereda rudimentar a perder de vista, o que me fez desistir dessa incursão.
Também em Florianópolis, andei fazendo diversas travessias pela Ponte Hercílio Luz no trajeto da Ilha para Capoeiras e vice-versa. Para lá levamos uma “alemãzinha” de Três Riachos, distrito de Biguaçu-SC, a fim de ajudar nos serviços de casa, comprometendo-nos a deixá-la com seus familiares de sábado a domingo, quando iríamos busca-la. Ela descia do carro no fim da estradinha que terminava próximo ao mercado existente na região e seguia por uma trilha que a gente não sabia aonde ia dar. Até que um dia um colega se dispôs a acompanha-la para apanhar um passarinho e se arrependeu amargamente, depois de uma longa caminhada pelos morros cerrados.
Aquele mercado era uma espécie de “centrinho” de Três Riachos e que se enchia de gente toda vez que lá chegávamos e, numa das voltas, esperava-nos, junto com a filha, a mãe para reclamar sem qualquer discrição estar a menina passando fome lá em casa, pois não servíamos pirão, o prato predileto dela. Assim, oferecia-nos um saco de farinha de mandioca para engrossar nossa alimentação. Ali mesmo provamos a qualidade do produto caseiro de um branco puro, gostoso de ingerir até mesmo cru, vindo a se adicionar em nossos hábitos alimentares com aprovação de toda família.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

JUSTO NAQUELE DIA, TANTAS TRAPALHADAS!

Justo naquele dia, em que o amigo Milton e eu resolvemos dar um giro pelas casas noturnas de nossa preferência, tinha de acontecer aqueles fatos inusitados. Logradouros mal iluminados, de repente nos vimos no centro de uma confusão danada, cercados pelos brigadianos na quadra fechada. Milton, com os braços levantados, pedia para que eu parasse. Surdo, segui caminhando em direção àqueles dois vultos que gritavam alguns metros na minha frente, até sentir uma carabina encostada em meu peito e entender o que eles queriam: “Não se mexa, fique onde está!”
Justo naquele dia, o técnico alemão que trabalhava em sondagem de petróleo na localidade, depois de encher a cara de tanta cerveja com soda limonada – se queixava do amargor da nossa bebida –, inventou de apedrejar os vidros das casas com “luz vermelha” nas portas, provocando todo aquele aparato policial, além de algum casal clandestino se valer de saídas de emergência... E eu por pouco não fui acusado daquela “germânica” esculhambação para ser submetido a maiores interrogatórios, graças à interferência de Milton convencendo os guardas de minha deficiência auditiva.
Justo naquele dia, ainda tivemos coragem de chegar à casa de “Tia Margarita”, quando Marlene deu para se engraçar comigo na frente de Pedrão, estivador no caís do porto e “dono do pedaço”, de quem tinha se afastado por desentendimento amoroso. Mal enxergou seu brutamonte ali chegando, jogou toda sua robustez amassando meu colo franzino e tentando despeitá-lo: “Viu só? Já estou com homem novo...” Eu tentava me desvencilhar e aquela abundância me lambuzava com o batom exagerado de seus lábios: “Eu fora, não tenho nada que ver com isso” – enquanto Mister Músculo cerrava os punhos, dizendo para eu fazer bom proveito.
Justo naquele dia, entrei madrugada adentro, detido por Marlene em seu quarto, invejando Milton que tinha se retirado mais cedo. Porém, não me demorei muito e logo consegui escapar das garras daquela “matrona”, saindo para a rua apressado e temendo alguma represália por parte do rival descartado. Assim, colocava à prova minha regra de evitar qualquer confronto e manter distância de indivíduos mais avantajados fisicamente. Acredito que meu anjo da guarda fez um bom trabalho, conduzindo-me são e salvo, apesar dos sobressaltos da jornada.
Justo naquele dia, nem sei onde estava com a cabeça para enfrentar tantas adversidades. Bem que podia continuar enfiado no salão de sinuca, bebericando e enchendo os pulmões com a fumaça dos cigarros acesos. Afinal, estava me divertindo com as discussões acaloradas dos inconformados perdedores, eu mesmo arriscando algumas tacadas sem capricho em inocente passatempo. Depois era só pagar a conta dos minutos gastos e sair incólume por onde entrara. Mas tinha que falar mais alto o notívago inveterado, querendo esticar o tempo ocioso...
Justo naquele dia, tive oportunidade de consolidar uma forma de conduta que valoriza o respeito mútuo e as diferenças, evitando as reações intempestivas. E até agora, tenho me valido dessa mansidão para colher os efeitos desejados por minha vontade. Desde então, é que esse fato veio a ficar indelevelmente marcado e, sempre que posso, procuro compartilhar a lição aprendida com outros mais próximos e necessitados deste modesto modo de pensar, como veio a ocorrer anos mais tarde com um velho conhecido.
Justo naquele dia, surgiu a mensagem que se ajustaria futuramente para advertir certo cidadão idoso e metido a conquistador que estava a fim de assediar uma senhora presente no almoço em que estávamos juntos:
- “Olha só que linda aquela “coroa”, vou lá falar com ela...” – e eu lhe preveni:
- “Não vai não, "seu" Chico, que o marido dela é atleta de luta livre”. E mesmo assim, ele nem se convenceu, tinha outras convicções e me retrucou, batendo pé:
- “Pode ser lutador, mas não quer dizer que deva estar ‘descalcificado’!”

segunda-feira, 11 de julho de 2016

DE BILHETEIROS E SUA SORTE "MUI" GRANDE

O simpático Buré e seus craques navegantinos.

Don Ramón trabalhava na Aduana uruguaia da Ponte Internacional Mauá (Rio Branco) e, ao que me consta, tinha seus “bicos” como agente do magazine London Paris, de Montevidéu, capital daquele país vizinho. Como tal, costumava ir até Jaguarão, no lado brasileiro, para repassar o volumoso catálogo daquela conceituada casa comercial a meu tio Cantalício Resem. Para mim, menino ainda, era uma tentação folhear as páginas da esmerada publicação, sem exigir aquisição de qualquer produto ali exposto, cuja encomenda era decidida por quem dispunha dos recursos necessários.
Pois este catálogo e mais as figurinhas do chocolate Águila, então adquirido “allá de la puente”, ainda permanecem fixados nas recordações duma longínqua infância. Lembro ainda que Don Ramón era irmão de cor e sangue de Frederico, que morava e vendia bilhetes de loteria em nossa cidade. Ambos negros elegantes bem vestidos, mas que se distinguiam falando cada qual o idioma da localidade em que residiam, já que seriam “hermanos” apartados por duas pátrias com um mesmo berço de origem – o que bem caracterizava o nosso amálgama fronteiriço.
E assim me esforço para trazer a mente outros bilheteiros como a admirável figura humana do saudoso Buré, deficiente físico com defeito em ambos os pés e dificuldades na fala, mas com uma notável capacidade de superação. Buré morava bem longe, lá pelos subúrbios da capela São Luiz, e se deslocava de pés descalços até a zona central de Jaguarão, sem recursos na época para usar sapatos especiais. Torcedor fanático do Navegante Esporte Clube, insinuava-se pelas mesas do Café do Comércio, sempre bem recebido e generosamente aquinhoado com o troco do cafezinho.
Fui-me da querência e andei por outros rincões, sem que deixasse de chegar inúmeras vezes por lá para rever amigos e parentes. E Buré que ali ficou, quando me enxergava sempre tinha seu bilhete com a saudação cordial, enquanto eu notava uma transformação gradual em sua vestimenta e aspecto físico, alcançando almejado par de sapatos, além de roupas limpas e chapéu que lhe garantiam uma melhor qualidade de vida. Como resultado da profícua e honesta atividade que exercia.
Remexendo no subconsciente, surge-me uma época em que frequentava a casa de meu primo Anysio de Souza Resem, vizinho da residência e oficina mecânica de Cláudio “Sheda” de Freitas, ali fazendo amizade com a turma vizinha que me acolheu na esplanada das figueiras de trás do Mercado Público, onde o pessoal corria atrás de uma bolinha de meia, muito bem tratada por um negrinho franzino, conhecido por Hiria, abusando de dribles desconcertantes. Paulinho e Adão, da família do “Sheda” e mais Ercio Gentil eram outros companheiros inesquecíveis.
O “campinho” se situava entre a Usina Elétrica e o Mercado, no início da Rua 27 de Janeiro e, na outra rua paralela, XV de Novembro, havia um amplo largo totalmente desocupado até começarem as obras de construção da Capitania dos Portos. Cercada de tapumes, que a gente dava jeito de invadir para dar vazão às travessuras imaginadas num esconderijo das vistas de qualquer passante na Avenida 20 de Setembro (Beira Rio), propício para assombrar algumas pessoas inadvertidas nas horas mais sossegadas. Para dar o tom de alma penada, eu ainda arranhava na gaitinha de boca.
Numa dessas ocasiões, circulava ali na Beira Rio o bilheteiro castelhano Marrecão, baixote e troncudo, buscando algum cliente para acenar com a sorte grande. Não deu outra – na linha de frente, a artilharia de estilingues se preparou e lançou as bolinhas de cinamomo (paraíso), pegando em cheio o incauto que logo se virou para ver de onde vinha aquela saraivada. Intrigado, aceitou a trégua e seguiu seu caminho. Ai resolvi soprar a gaitinha para assistir os companheiros correndo de um lado para outro, o que me obrigou a seguir atrás até me topar com Marrecão adentrando o recinto. Não chegou agarrar nenhum de nós, mas não deixou de dar queixa ao Sheda e, a partir do dia seguinte, este colocou seus guris no batente da oficina e ponto final em nossa diversão.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Como seria defendido Qorpo Santo em dias atuais

"José Joaquim de Campos Leão, autonomeado Qorpo-Santo, meu cliente, comprovadamente é um homem de intelecto elevado a tal ponto que pode ser confundido com loucura. Ademais, a autora do processo, Sr.ª Inácia de Campos Leão, aparenta desimportar-se com o bem-estar do marido, atribuindo maior relevância e consideração aos bens de meu cliente em detrimento da liberdade deste.
Qorpo-Santo demonstra capacidade plena para exercer todos os deveres e direitos da vida civil e, apesar de seus hábitos peculiares, jamais apresentou qualquer risco à sociedade. Sendo assim, é possível evidenciar o total descabimento deste pedido de interdição.
Os fatos anteriores, apresentados pelos testemunhos de Juvêncio, fiel criado de Qorpo-Santo, e Eusébio, amigo próximo do réu, servem apenas para ratificar a sanidade de José Joaquim de Campos Leão perante a comunidade.
Se, em algum momento, seu comportamento possa ter levado qualquer pessoa a crer na loucura de meu cliente, talvez tenha sido pela discrepância de suas ações. Quando um homem teme por sua segurança e não tem outro meio de defendê-la, o melhor que pode fazer é trancafiar-se em sua própria casa, cenário em que Qorpo-Santo decidiu tornar uma janela sua porta de entrada e saída.
Quanto aos delírios que tanto Inácia quanto Juvêncio afirmam ter presenciado podem ser tratados por um psiquiatra capaz em sua função, não havendo necessidade de internar um homem plenamente apto a viver em sociedade."