Na baixada daquela rua, cheia de buracos
e cascalhos, fazendo esquina com o caminho que vinha do Asilo, situava-se um
pequeno sobrado. A umidade constante do local, encravado naquele canto por uma
sanga rodeada de taquarais correndo pela divisa do terreno, retocava de um rosa
esmaecido a sua pintura mais que descascada. A fachada principal se recuava
dando espaço para um roseiral a separá-la da mureta com o portão de madeira em
frente ao íngreme barranco, no cimo do qual se avistava hospital e capela da
Santa Casa. Na lateral, possuía ainda um avanço de um só piso e pé-direito de
pouca altura e uma pequena porta a entestar com a Rua da Baixada. Por ali se
entrava no humilde estabelecimento daquele sapateiro que se fizera respeitar
pela clientela das redondezas com a qualidade dos seus serviços.
Lá dentro, Alemão, como era conhecido no lugar, mantinha-se ligado ao
movimento da rua, enquanto amaciava alguma sola de couro batendo diligente com
o martelo num dos suportes do tripé acomodado entre os joelhos dobrados e cobertos
pelo avental ensebado, a se equilibrar sentado numa rústica banqueta. Dali ele enxergava,
no sol a sol das suas lides, o monótono cortejo das mesmas caras que se
repetiam a cada dia, nas rotineiras passagens das idas e vindas dos locais de
trabalho. Sentidos aguçados, tanto podia reconhecer o passo marcial do sargentão
se dirigindo apressado ao Quartel como o perfume adocicado das prostitutas,
perambulando ali perto, a catar os últimos raios solares para se arejarem um
pouco do mofo da Pensão.
- Seu
Alemão! Seu Ale... mão... – o guri entrou na sapataria tropeçando
desavisado no falso degrau, pois não atinara em desacelerar a corrida
desabalada em que vinha rua abaixo, quase expelindo os bofes boca a fora, resultado
do atropelo da fala com a respiração.
- Te acalma, moleque! Afinal por que
toda essa correria? – parecia que Alemão,
a entrada imprevista, fora pego de surpresa.
- Foi a filha do Maestro, seu Alemão...
Ela me pediu para lhe chamar o mais rápido possível. E que é para o senhor
levar o instrumento... Entendeu? – o guri deu o recado e se mandou porta afora
sem dar mais explicações, tão estabanado como entrara.
A situação inusitada, logo foi se
desvencilhando do avental que lhe protegia a roupa do uso diário, ao mesmo
tempo em que gritava para a mulher lá na cozinha preparando o almoço:
- Me alcança o “cachimbo”... Vamos,
rápido, que eu estou precisando ir à casa do Maestro!
Não precisou falar a segunda vez, em
seguida a esposa já lhe trazia o seu carinhoso “cachimbo”, um inestimável sax-tenor. Apanhou-o já dentro do estojo
e saiu apurado para a rua, sem dar ouvidos à mulher sugerindo que levasse algum
casaco ou qualquer outro abrigo para se proteger da garoa fina que caía lá
fora.
Enquanto subia a Rua da Baixada a passos
resolutos, começou a lembrar como o Maestro
se apegara a ele a ponto de o considerar um discípulo predileto. O Maestro apreciava a obstinação com que
ele se dedicava a ensaiar, tentando aperfeiçoar a sua maneira de tocar o
instrumento que lhe havia sugerido aprender. Os outros componentes da Banda até
que tinham mais facilidade em assimilar de pronto as instruções do Maestro, porém, a tranquilidade com que
se detinha numa constante busca de perfeccionismo na execução musical era
motivo daquela admiração. Se bem que custasse mais a fixar as notas de uma
partitura, tornava-se impecável após dominá-las por completo.
Lépido, duas quadras acima, já dobrava à
direita quando se deu conta de que desconhecia a razão do chamado do Maestro. Apenas sabia que este se
encontrava adoentado há alguns dias, recente ainda era sua última visita. E lhe
chegavam as notícias dizendo que o Maestro
passava bem, em franca recuperação. Mas que diabo ser chamado àquela hora
da manhã sem mais delongas. A dúvida se instalava em seu pensamento: e se fosse
coisa grave? Ah, se fosse, deveriam ter chamado o médico e não ele! Não, não
pode ser.
Ai sua atenção se voltou para o outro
lado da rua, um casarão de linhas clássicas, aqueles janelões antigos, sitos
dois a dois de cada lado da enorme porta de carvalho, entalhes em relevo que
combinavam com a eclética fachada, na qual ainda se viam as discretas aberturas
destinadas a ventilar o amplo porão abaixo do pavimento principal. À entrada entreaberta, já o aguardava a
filha do Maestro, logo veio a seu
encontro assim que o avistou.
- Que bom, Alemão, que vieste em seguida. Papai está lá dentro, ansioso por
te falar alguma coisa, insistiu muito para que te chamasse. - Ele nem conseguiu
dizer qualquer palavra, apenas se limitou a ser conduzido pela jovem senhora,
subindo os cinco degraus do hall de
entrada, passando da sala de visitas ao aposento em que se encontrava recolhido
o Maestro.
O ambiente refletia uma tranquilidade
aparente através da relativa imensidão daquele espaço onde se alternavam harmoniosas
as tonalidades claras e escuras das paredes e dos móveis do austero dormitório.
Numa cama de casal, obra artesanal de madeira maciça, enfiava-se na cabeceira a
tela do mosquiteiro pendente do teto. Ali estava o Maestro, cabeça recostada num amontoado de travesseiros e os braços
soltos sobre lençóis e cobertas limpas e arrumadas. Os olhos dele ganharam novo
brilho com a chegada do bom amigo e um sorriso feliz se estampou naquela face
desgastada pelo tempo.
- Aqui estou, Maestro, pronto para lhe atender... – nem concluiu a frase, pois
reparava o enfermo fazendo sinal com a mão para que se aproximasse mais como se
quisesse comunicar algo. E ele não hesitou em chegar até a beira do leito a fim
de escutar melhor aquela voz sussurrante.
- Te lembras, meu filho, daquela Ave Maria que te ensinei para tocares junto com o
Coro da Igreja? Pois bem, eu gostaria que a executasses agora no teu virtuoso
sax.
Alemão
nem titubeou, retirou o “cachimbo” do estojo e destampou o bocal, aproximando-o
dos lábios já prontos para aquela interpretação. De leve, os dedos ainda
estavam engraxados e as unhas encardidas pelo serviço interrompido em questão
de instantes. Sentiu-se embaraçado com a grotesca aparência, mas mesmo assim
procurou esquecer, soltando o ar que percorria aquele labirinto de carnes e
metais, lá do fundo das suas entranhas para se lançar na graciosa revoada do
som, lá do âmago da sua sensibilidade a se espalhar livre pela atmosfera.
Entrementes, o Maestro se enlevava numa sensação de paz e conforto aliviando o
corpo combalido. Fechava os olhos e ficava assistindo à retrospectiva da sua
vida. O lugarejo onde nascera, encravado nas montanhas da longínqua Veneto. As
horas em que se detinha sentado na cerca de pedras, pastoreando as ovelhas no
vale acidentado, onde a campina surgia do solo rochoso. A sinfonia da natureza,
o vento soprando nas grotas e a água do riacho correndo entre os cascalhos do
seu leito. A longa caminhada de todos os dias em gélidos amanheceres rumo à
Escola. O pífaro jogando melodias na estrada de chão batido, conforme a
imaginação criava. O sonho de chegar ao Liceu de Música e se tornar regente de
uma grande orquestra. De um dia se apresentar no Scala de Milan. O grande
conflito mundial, países arrasados, populações inteiras na busca de um destino
mais alentador. A chegada ao Brasil, uma aventura que modificou todos os hábitos
da sua existência. A retomada de antigos anseios dos quais jamais abdicou.
Sempre investindo em sua verdadeira vocação, o remanescente que fora realizado
compensava amplamente o empenho nessa árdua batalha. No final, a balança pendia
a seu favor.
No ambiente, pairava o sobre-humano
esforço do saxofonista para não interromper a execução daquela peça instrumental.