sábado, 27 de junho de 2009

DISCONTUS : XXIX, XXX, XXXI & XXXII

DISCONTUS XXIX
Minha retina parece um cosmos onde se travam formidáveis batalhas navais.
Como guerreiro estelar, o oftalmologista é paciente, nunca desiste: dispara o canhão do laser e impede o inimigo de me jogar a visão no buraco negro.
DISCONTUS XXX
Minha cabeça é uma concha acústica, caixa de ressonância por onde penetram os ecos do passado que só me fazem escutar solidão.
DISCONTUS XXXI
Que fazes, minha doce menina, encerrada nesses olhos tristes? Por que se arregalam eles quando pareces que queres fugir?
Ah, esse arrebatamento como se bastasse um príncipe para te resgatar!
DISCONTUS XXXII
No cimo daquele morro, onde sopra o velho vento que tanto me desgrenhou esta crespa cabeleira, ainda quero contemplar a paisagem dos meus sonhos. O casario despencando suave, encosta abaixo, até chegar bem perto do meu caudaloso rio. Então me permitirei uma derradeira lágrima como minha despedida neste caminho sem volta.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Mais currículo menos diploma

O jornalista Lino Tavares, de Alegrete, tem freqüentado as colunas de opinião de alguns jornais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, protestando contra a decisão do Supremo que cassou a exigência de diploma de Jornalismo para o exercício da profissão. Acredito que essa medida seja uma forma de autodefesa de Suas Excelências quanto à demanda – provavelmente uma enxurrada - que por certo deve estar acontecendo, de processos pendentes sobre aquela irregularidade. Parece-me que assim eles estariam retirando o sofá da sala, caso contrário não perderiam o precioso tempo de suas atividades para discutir o sexo dos anjos dessa questão.
********************************************************************* Então me acode a idéia que se começa a esboçar da profissão de escritor a ser regulamentada através dos cursos de graduação em Letras existentes em várias universidades do país. Ora, escrever bem e corretamente é um dom que prescinde de qualquer exigência de diploma, porém, requer uma prática e disciplina constante para se obter um contínuo aprimoramento. E as Oficinas Literárias estão aí para abreviar esse aperfeiçoamento para os mais talentosos, além de formar leitores melhor preparados para percorrer os rumos sinuosos da arte da escrita. E o resto é autonomia de voo.
********************************************************************* Em qualquer profissão liberal, assistimos cotidianamente o desvirtuamento da instituição do diploma de curso superior em que muitos formados se vem às voltas na luta por uma colocação no mercado de trabalho, sujeitando-se a exercer funções não compatíveis com o seu preparo (p.ex.: farmacêuticos/balconistas), já que lhes falta a experiência necessária e a oportunidade de treinamento adequado nas empresas procuradas, cujo maior interesse concentra-se no candidato já pronto.
********************************************************************* E muitas vezes as grandes realizações do gênio humano processam-se por meio de gente comum que apenas dispõem do seu extraordinário bom senso e sentido de observação da Natureza, como é o caso daquele jardineiro e assistente negro do Dr. Christian Barnard, no pioneiro transplante de coração ocorrido na África do Sul. Em plena época do apartheid racial vigente naquele país, esse cidadão propiciou todas as condições para que aquele cirurgião se tornasse uma celebridade mundial, revelando-lhe as técnicas rústicas das operações bem sucedidas que costumava efetuar em animais. Isso que a sua aparição nas fotografias da equipe do Dr. Christian era sempre escamoteada do público, sem que ao menos lhe fossem proporcionadas melhores condições de vida – humilhado no gueto em que morava com sua família. Embora tardiamente, o reconhecimento de suas habilidades veio-lhe com a outorga do Diploma de Doutor Honoris Causa pela University of South Africa.
********************************************************************* Outro exemplo marcante que posso revelar, diz respeito a meu tio e pai de criação – Cantalício Resem – autodidata alfabetizado até o 3º. Ano primário por seu progenitor; aprendeu Geografia com os selos que juntava nos envelopes descartados da correspondência em seu emprego; um dos idealizadores do curso de alfabetização 20 de Setembro, em Jaguarão-RS; jornalista panfletário d’A Situação; viria a tornar-se Juiz de Direito nessa cidade, por nomeação - a qual tentou declinar, mas que foi intimado a assumir - do então Presidente do Estado, Dr. Carlos Barbosa, chegando a ter elogiados seus despachos em julgado por eminentes desembargadores no Tribunal de Justiça. Ele sempre me aconselhava a ler bastante para que escrevesse bem – com a leitura podes até dispensar a gramática. Ao meu saudoso primo e irmão de criação, seu filho Anysio de Souza Resem, coube-lhe o encargo de dar continuidade à editoria do jornal A Folha, outro dos seus empreendimentos. Sem nunca ter obtido um diploma sequer.
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Resumindo: as Faculdades de Comunicação devem continuar burilando a competência dos mais aptos para concorrer em condições mais vantajosas pelas vagas disponíveis.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A HERANÇA DE UM IDEALISTA


Em abril último, estive participando de reuniões para reativar a Associação do Museu da Imagem e do Som de Porto Alegre, ocasião em que tive oportunidade de voltar a manter contato com o seu idealizador Hardy Vedana. Então lhe falava da veteranice da maioria do pessoal que ali se encontrava reunido, afora os representantes da Secretaria Municipal de Cultura como apoiadores desse projeto. Com o que ele não concordava e retrucava dizendo da sua saúde debilitada, a qual não o impedia de seguir adiante em suas atividades de pesquisa e codificação dos primórdios da música em nossa Capital.
Era sensível a preocupação de todos os presentes em acelerar as providências para constituição e localização da sede dessa entidade, preservando e restaurando o antigo prédio onde funcionou A Casa Elétrica, fábrica de discos pioneira no início do século passado, atualmente abandonado e sito na Avenida Sergipe, bairro Glória. Velho batalhador da idéia, Vedana mostrava-se atento à explanação do companheiro Battu que vem se dedicando com afinco para conseguir legalizar o tombamento daquela área como Patrimônio Cultural do município.
A Secretaria Municipal de Cultura já vinha apoiando e preparando um projeto para ser apresentado ao Minc, de restauração da Casa Godoy, já tombada na Avenida Independência, para guardar o acervo de Hardy Vedana que seria doado àquele Museu, o qual também teria ali instalada a sua sede provisória. Para tanto necessitava que fosse realizada Assembléia Geral para eleição da nova Diretoria da Associação e aprovação do seu estatuto social.
Já em 29 de abril, Hardy Vedana não se furtou ao encargo de presidir essa Associação até 2011, tendo Nério Letti como secretário e José Alberto de Souza como tesoureiro, além de Juarez Fonseca, Danilo Ucha e Carlos Bocanera Koch como membros do Conselho Fiscal, quando então solicitou um tempo para se submeter a uma intervenção cirúrgica na iminência de ocorrer naquela época.
Uma queda, duas costelas fraturadas, pneumonia contraída, uma parada respiratória e outra cardíaca, não dava mais para resistir e, dois dias após completar 81 anos (13/06/2009), Ardy Antônio Vedana, sai de cena melancolicamente, abandonando a contragosto toda uma obra a completar, antigos projetos que jamais deixou de lado num esforço extraordinário para levá-los adiante. Mas ele nos deixa com a força do seu exemplo e desprendimento e o compromisso de prosseguir na sua jornada interrompida.
Enquanto isso, fico a pensar naquela conversa com um velho taxista, indignado com a greve dos metroviários, ocorrida recentemente, provocando um trânsito caótico em nossas principais vias de escoamento. Este também me dizia que, apesar de aposentado, continuava trabalhando para não sentir-se parasita na sociedade em que vive. E eu argumentava com a necessidade de injetar sangue novo nas instituições esclerosadas, como era o meu caso cedendo o meu espaço aos mais moços. Reacionário, queria apenas me convencer que essa gente nova era de uma geração de malandros e drogados que não se esforçava por merecer a posição dos mais experientes.
Nessa linha de raciocínio, sou levado a espelhar-me na razão do saudoso Hardy, na sua tenacidade, na dedicação de uma vida inteira a resgatar fatos, valores e costumes relegados à poeira do ostracismo. Como se estivesse lembrando daquela inscrição na entrada do Templo Positivista de Porto Alegre – os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A triste ronda de uma tragédia

Recém hoje me dou conta, mas espera aí, esse cara eu conheço. Pois é, meu caro amigo, as tragédias rondam-nos por perto e a nossa insensibilidade não nos permite enxergar o que se passa a nosso redor. Como se nunca fosse acontecer a qualquer um de nós. Veja só: 228 passageiros, 34 nacionalidades e, entre eles, alguns gaúchos, justamente ele, a sua esposa e sua filha que tiveram a sua sonhada viagem de recreio interrompida pela fatalidade. Embora tardiamente, é como uma punhalada que me dilacera a alma.
Ai perpassa pela minha mente, aqueles momentos tão marcantes, em 1994, quando acorríamos semanalmente à Biblioteca Pública do Estado, a fim de participar daquele inesquecível Seminário de Criação Literária da Profª. Lea Masina, num saudável convívio de aprendizado e troca de experiências. Além de nós, compareciam ainda o Paulo Fabris, o Blau Fabrício de Souza, a Maria Aparecida Becker, a Beth Motta, a Maria Moura, o Leandro Mallmann, a Maria Amoretti, o Regis Conte.
Hoje estou remoendo-me todo naquelas imersões do nosso batismo literário, tomando conhecimento da obra de autores clássicos e contemporâneos, tais como Sérgio Faracco, Manoel de Barros. Antônio Carlos Resende, Adolfo Bioy Casares, Mário Arregui, Sófocles, Shakespeare, Guy de Maupassant, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Alan Poe, D.H.Laurence, Horacio Quiroga, Jorge Luis Borges e Virginia Woolf. Posteriormente, repassávamos a regionalidade de Alcides Maia, Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo, Lia Luft, Laury Maciel, Caio Fernando Abreu, Assis Brasil e Reynaldo Moura.
Detenho-me relendo dois trabalhos seus apresentados naquelas reuniões e me espelho na sua extrema sensibilidade, no gosto artístico e na refinada cultura da sua formação acadêmica. Revejo as suas importantes e assíduas colaborações nas coletâneas Médicos (pr)escrevem, coordenadas por Blau Fabrício de Souza, Fernando Neubarth, Franklin Cunha e José Eduardo Degrazia, abordando Ficção, Crônicas, Memória, Humor, O Cômico e o Inesquecível. Abro na sua secção em MP 1996 (página 155) e transcrevo:
Roberto Corrêa Chem – Nasceu em Bagé, em julho de 1942. Filho único, estudou até o final do curso primário no Colégio Espírito Santo e em 1950 a família mudou-se para Porto Alegre. Fez todo o resto do curso secundário no Colégio Rosário. Bacharelou-se em História Natural e era professor de Biologia no curso pré-vestibular Mauá, enquanto fazia o curso de Medicina na antiga Faculdade Católica de Medicina, hoje Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas. Ao terminar o curso médico fez concurso e ingressou no magistério superior na área de Anatomia Humana, onde trabalha até hoje. Formado em Cirurgia Plástica, sua especialidade, atualmente dedica-se ao magistério em ambas as áreas: Anatomia Humana e Cirurgia Plástica. Publicou um livro pioneiro na área médica: Introdução à microcirurgia reconstrutiva (Medsi, 1992). Casado com psicóloga, pai de três filhos: um médico, uma bacharela em Comércio Exterior, e uma aluna de curso pré-vestibular.

Nessa mesma página, colhi o seu autógrafo – Para Gislaine e José Alberto, com a esperança de que possamos fazer uma nova Oficina juntos. Com meu abraço RCC agosto 96. Não deu, fiquei-lhe devendo esta, quem sabe ainda possa reencontrá-lo em outro plano para me esclarecer melhor espiritualmente, orientando-me com as luzes do seu caminho.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A panquecaria da prima Clotilde

De família pobre, o Zequinha tinha vindo do Interior, a convite de um tio, para procurar emprego na Capital. Esse tio que era zelador de um edifício, com a chegada do Zequinha, tratou de acomodá-lo num velho sofá-cama existente no galpão de ferramentas anexo à sua moradia situada no terraço do prédio, também utilizado para secar as roupas lavadas dos moradores nos varais estendidos no local. O Zequinha que não era dado a escolher qualquer ocupação, logo topou se arranjar como ajudante de padeiro na mercearia dos gringos ali perto, com horário puxado desde a madrugada a fim de colocar no forno a massa crua e repartida para dali sair transformada no sovado quentinho que a clientela buscava ávida para o alimento matinal. E mais ainda havia umas três fornadas para completar a produção diária até o entardecer.
E de noite, o Zequinha fazia um esforço danado para freqüentar a escola noturna que lhe possibilitaria conseguir uma melhor qualidade de vida. A rotina podia ser desgastante, mas ele ia agüentando firme, saindo do seu quartinho quando nem o sol tinha se levantado e voltando de tarde apressado a fim de pegar uma ducha ligeira e suficiente para banir do seu corpo o suor misturado com a farinha de trigo.
Raramente o Zequinha costumava avistar o seu tio e a esposa ao chegar ao apartamento deles, pois ambos se viravam por fora para conseguir uma renda extra a seus ganhos naquela zeladoria. Ele, bastante solicitado em serviços de hidráulica, eletricidade, pintura, sempre pegava o que aparecia, e ela cavando o seu em trabalhinhos de arrumadeira e passadeira. Clotilde, a filha, é que ficava tomando conta de casa...
Clotilde tinha as suas aulas no colégio durante a manhã e, à tarde, passava estudando e preparando os deveres de casa ou então assistindo televisão, sendo interrompida toda a vez que o Zequinha dava com a toalha, sabonete e a cara sisuda – oi, tudo bem – passando apurado em direção ao banheiro e depois se mandando para a rua, todo bem vestido. Até que um dia, a Clotilde notou algo de estranho nele...
E sempre num certo dia, geralmente ensolarado, em que ela ficava a cismar – xi, hoje tem roupa no arame! Pois nestes dias, não se sabe de onde, surgia no terraço recolhendo a roupa seca, Dona Antoninha, moradora do 507, recém separada do marido, que em seguida retirava-se toda lampeira, cantarolando escadas abaixo. E justo nesse instante, é que o Zequinha adentrava, toalha e sabonete, o corpo todo lambuzado, para o seu banho.
A Clotilde resolveu então tomar umas providências. Colou uma foto da Ana Hickman na parede do seu quarto e foi se espelhando na celebridade. O cabelo crespo desleixado foi recebendo umas chapinhas daqui e dali, carregou no xampu da banheira, a maquiagem caprichada, fez um photo shop ao natural, enfiou-se no tubo curtíssimo do modelito negro frente única que tinha descoberto na liquidação do supermercado.
Naquele dia, assim que o sol caia no poente, já não tinha mais nenhuma roupa no arame, o Zequinha saiu da sua toca naquela sutileza de sonso disfarçado e foi chegando para a higiene habitual, nem notou a ausência da prima na sala. Mas assim que se retirou da sua privacidade, eis que enxerga aquela tremenda ninfeta a ofertar-lhe uma taça de Côte Rouge, vinho uruguaio em promoção na praça, e querendo esticar o papo monossilábico...
Ele que escolhesse o sabor - à bolognesa, à catupiry ou à calabresa - pois, a partir de então, o Zequinha jamais poderia deixar de lanchar na panquecaria da prima Clotilde.