domingo, 27 de julho de 2014

GENTE OU BICHO, CADÊ A INCLUSÃO SOCIAL?

Antonio Galderio "Sem Teto"

Sabes quem eu sou? De onde venho?
Pois é, ninguém sabe nem quer saber. Nem mesmo eu me importo
com falta de vontade, impedindo-me de reagir.

Quando peço uma moedinha, qualquer coisa já me basta,
até agradeço por teres me dado atenção,
chego a ficar contente apenas com tua palavra.

À noite, tenho vontade de procurar a casa de Deus,
mas sempre encontro as portas fechadas
para que eu não permaneça por lá um tempo sem fim.

Fico perambulando pelas ruas, ajeito-me agachado
em qualquer canto onde possa descansar
sem que perturbe a passagem indiferente das pessoas.

Sentimento de gratidão é que me ocorre quando encontro
o espaço generoso de uma dessas marquises sem grades
para me abrigar das intempéries.

E como dói ter que depender da caridade alheia,
muitas vezes mitigada pelo carinho de um prato de sopa quente, 
repartido como pão de Cristo.

Amigo, talvez não saibas nem tenhas vivenciado
esta total carência de quem deixou e segue deixando
o tempo passar na falta de oportunidades.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

E por falar no apito tão estridente do carro motor

Em remotas eras, certo amigo me apresentou a uma bela “dama da noite”, conhecedora profunda do comportamento masculino, tecendo rasgados elogios à minha pessoa, apesar de não merecidos. Do alto de sua refinada experiência, essa dona não chegou a colocar em dúvida aquelas referências, porém, colocou-se a desfiar todas as decepções que lhe ensinaram a conhecer melhor o sexo oposto. E nos apontava apenas uma distinta figura do seu relacionamento como modelo de cavalheirismo, pautado em atitudes de respeito indiscriminado à condição social de cada criatura e que se chamava João Batista.
Assim, em rápidas pinceladas, apresento o perfil desse indivíduo que deixo em suspenso para compreender a profunda ansiedade por que passa todo ser humano ante as resultantes traduzidas pela química das reações emocionais. Dizem os espiritualistas que já somos programados desde os planos superiores. De modo inconsciente, mal percebemos os sinais que nos chegam através de inúmeras ofertas sociais de interação aos pares no meio onde vivemos com o fim de perpetuar a própria estirpe. E o nosso espírito vaga por ai perdido para encontrar afinidade de gostos e ideias.
Agora, imagine-se como estudante, dinheiro contadinho, que vai passar fim de semana na casa de parentes, em Barra do Ribeiro. A seu lado, viaja linda jovem, calada, que vai desembarcar numa parada logo adiante a fim de fazer baldeação a um ônibus de partida para Sertão Santana. Da sua janela, você avista ela embarcando no outro veículo e lançando para si um significativo sorriso. Você pensa em tomar outro rumo, mas ai surge o dilema de quem vai lhe pagar a passagem de volta. Cada um segue o seu caminho até nunca mais, pois aquele desencontro já fora previsto em sua programação.
Tantas partidas e chegadas nestas estações aonde nos conduz o destino que a gente não deixa de esquecer as muitas paragens de nossa existência. E ali naquela aduana no lado uruguaio da Ponte Internacional Mauá, hoje é difícil de conceber a ausência daquele carro motor que ia e vinha pelos trilhos de Rio Branco a Montevidéu, levando e trazendo aquelas pessoas complicadas para se identificar nas suas pretensões como de passeio ou negócio. Passageiros das mais diversas origens, misturando-se em multicoloridas roupagens que mal denunciavam seu modo de vida.
Afinal quem era João Batista? Boêmio, solteirão inveterado, filho de fazendeiro que ajudava o pai nas lides campeiras, com tempo suficiente para se dividir entre a dureza da atividade rural e as ocupações comerciais que não prescindiam de sua presença na cidade. Tínhamos um amigo comum, Vitório Silva, um velho companheiro das rodadas no Café do Comércio,  que sempre me falava das qualidades de João Batista, as quais eu ia agregando com admiração, apesar de não lhe desfrutar da intimidade. E o Vitório foi quem me contou um acontecimento rocambolesco, envolvendo aquele nosso personagem.
Estavam os dois passando de automóvel pela Aduana uruguaia no momento em que os passageiros embarcavam no carro motor, quando João Batista viu aquele perfil de rosto feminino que lhe encantou. Parecia que lhe sopravam: “Esta é a mulher da tua vida”. O trem já ia saindo, mas ele não teve dúvida para instruir Vitório: “Vamos até a estação da Cuchilla, que lá eu compro a passagem e pego o carro motor, preciso falar com aquela moça que nem conheço. Tu telefonas para o representante de meu pai em Montevidéu, Mateo Gallindo, que me espere lá na chegada desse trem, pois necessito acertar um negócio com ele. E levas o nosso carro para casa em Jaguarão”.
Nem preciso contar que ele terminou casando com a "involuntária visão", embora tivesse se apresentado a ela de botas e bombachas, a mesma roupa com que saíra da campanha. Apenas contando com presumíveis préstimos de uma pessoa de Montevidéu, que só distinguia de ouvir falar em seu nome.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

QUEM DIRIA: * ESTA GENTE ANDOU POR LÁ (II)


Grande ator do teatro rio-grandense, natural de Jaguarão, Joberto Teixeira levou à cena, no Teatro Esperança, o monólogo “As Mãos de Eurídice”, a mesma peça com que foi aplaudido de pé no principal palco do nosso Estado – o São Pedro, de Porto Alegre. Fiquei sabendo, através de uma emocionante crônica do Professor Cléo dos Santos Severino publicada no jornal “A Folha”, lá pelo fim dos anos cinquenta, que o espetáculo foi realizado para uma restrita plateia, mas que no dizer desse articulista com a presença de um casal de idosos, nada mais nada menos que os pais daquele artista, lotavam todo o espaço vazio daquela casa, dada a feliz oportunidade deles assistirem a magistral interpretação do seu talentoso descendente.
Outro momento mágico do nosso Cine Teatro Esperança me foi relatado pelo saudoso amigo Newton Silva, quando ali se apresentou o notável cantor e compositor Rubens Santos, já falecido, um dos parceiros de Lupicínio Rodrigues, então cumprindo uma turnê artística patrocinada pelo Governo do Estado, provavelmente acertada pelo empreendedor Danilo Brum, o qual integrava o Conselho Estadual de Cultura. Pois o Newton me enfatizou que esse espetáculo foi dirigido a uma meia dúzia de assistentes, os quais chegaram a sentir pena de tantos ausentes que deixaram de conferir um dos mais abalizados intérpretes do velho Lupi. Compreendi perfeitamente essa colocação, tendo acompanhado o veteraníssimo Rubens em inúmeras performances no antigo restaurante do CIB – Centro Ítalo Brasileiro, situado na Rua João Teles, bairro Bonfim, que costumava reunir às segundas-feiras a nata da música rio-grandense, ocasiões em que abusava de sua potência vocal, sem utilizar qualquer microfone.
Os tópicos acima transcrevi de crônica aqui publicada em 28/11/2010 e intitulada “Vivenciando instante privilegiado”. Feito esse reparo e aproveitando a deixa, ocorre-me uma passagem que me contaram sobre o desempenho do radialista Wilson “Catico” Almeida, filho da terra que ousava desafiar o dito “santo de casa não faz milagre”, representando naquele palco o difícil monólogo de Pedro Bloch, tantas vezes levado à cena pelo famoso artista Rodolfo Mayer, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Disseram-me que os invejosos de plantão se combinaram para lotar o Esperança a fim de lhe contemplar com uma estrondosa vaia. Mas o que se viu, ao final, foi uma longa e calorosa aclamação de todo o público ali presente.
Aqui já andei falando daquela ocasião em que tio Cantalício me levou para assistir a uma peça no Teatro, da qual teve que se retirar mais cedo porque eu comecei a bater pé como fazia nas matinês do cinema. Ou então daquelas vezes em que, ainda garoto miúdo, insistia com meu primo Anysio, já moço taludo e namorador, que me levasse nas noites de segunda-feira ao Cine para assistir aos seriados do Tom Mix e, já na outra semana, era ele quem vinha me perguntar se eu não ia ver a continuação do folhetim. Vendo as chanchadas da Atlântida, impressionava-me com a interpretação de Silva Neto para Nervos de Aço, cuja autoria ignorava fosse de Lupicínio Rodrigues, ilustre desconhecido para esse analfabeto musical.
E a ZYU-7 Rádio Cultura de Jaguarão tinha seus programas vesperais de calouros, aos sábados, ali apresentando as atrações locais, onde pontificavam o regional dos filhos do seu Agostinho – Canhoto, Lourenço e Moacir – e mais o violonista Nery Antonini, além de Napoleão, Severo e Adalberto Mendes, notáveis seresteiros, cuja fama se propagava por toda nossa Zona Sul do Estado, estendendo-se Uruguai adentro.
Finalizando esta lição de casa, para descontrair, um episódio hilário. Uma tremenda bofetada ecoa pelo recinto e lá da galeria (“poleiro”) alguém grita: “Afofaram o Adem!”. A projeção do filme é interrompida, acendem-se as luzes da plateia e, lá de baixo, ressoa o brado do melindrado dengoso: “Que ovo!” Acústica perfeita, surgia mais uma das expressões típicas do “jaguarês”...
E o resto fica a cargo das memórias vivas de Cláudio Ely e Pedro Bartholomeu.

terça-feira, 15 de julho de 2014

QUEM DIRIA: QUE ESTA GENTE ANDOU POR LÁ

Carlos José Azevedo Machado, o Professor Maninho, está preparando uma tese de mestrado na UFPEL sobre Memória Social e Patrimônio Cultural e me solicita um depoimento acerca daquilo que vivenciei no Cine Teatro Esperança, de Jaguarão. Para início de conversa, devo relatar a indignação do amigo João Campelo Costa, o “Ceará”, falando da entrevista do ator Paulo Autran com a apresentadora Cristina Ranzolin, na qual ele citava os diferentes teatros do mundo inteiro, onde representara a sua arte, incluindo aqui no Estado nossa terra. E não é que Cristina não conseguiu se conter para lhe perguntar como é que ele, já sendo aplaudido em grandes metrópoles da América e da Europa, sentiu-se pisando o palco de uma cidadezinha inexpressiva como Jaguarão.
Em verdade, criei-me na mentalidade do “já teve” de tanto ouvir falar daquelas companhias líricas que faziam ponto de parada em Jaguarão em seus deslocamentos de São Paulo e Rio de Janeiro para as repúblicas do Prata, privilegiando nossa cidade com memoráveis temporadas. A acústica do Teatro Esperança sempre foi destacada pela sua clareza para se ouvir perfeitamente os diálogos encenados a partir da ribalta, encantando todos os artistas que ali se apresentavam. Entre aqueles que chegaram a meu tempo, era useira e vezeira em se hospedar no Gerundo Hotel a pianista Luzia Felix, sempre acompanhada do marido, o humorista Sérgio Felix, os quais nunca deixavam de marcar sua presença no vetusto Esperança, antes de seguirem para Montevidéu.
Outra das inesquecíveis atrações que ali tive oportunidade de presenciar, recordo da veterana cantora Dircinha Batista, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Muito simpática, ela falou da sua vinda a Jaguarão como uma viagem sentimental que trazia a lembrança daquelas excursões que fazia com seu pai, o cantor Batista Júnior, e sua irmã Linda, inclusive já tendo estado nesta região sul do Estado. Era de se ver como ela cativou naquele momento a plateia do nosso Teatro que a deixava entusiasmada e feliz com a receptividade jaguarense, a ponto de manifestar seu desejo de um breve regresso e sua promessa de vir acompanhada da outra irmã, também famosa, Linda Batista. Azar o nosso que não chegou a se concretizar essa expectativa.
Já que Professor Maninho me provocou para pisar nestas brasas de uma fogueira mental, nem precisei esconder a primeira ideia que me ocorreu. Veio-me à mente certa peça encenada no antigo “politeama”, cujo título me parecia “Helena abriu...” que procurei conferir com o "expert" Luiz Carlos Dutra Monteiro e ele prontamente me corrigiu: “Helena fechou a porta”, apesar de desconhecer o ator principal da cena. Martelava-me o cérebro um tal de Luiz, do Teatro do Estudante. Em contato com a Coordenação de Artes Cênicas (SMC/P. Alegre), Breno Ketzer Saul gentilmente me envia mensagem com o artigo “Teatrodo Estudante do Rio Grande do Sul” e eis que me “aparece a margarida” LUÍS TITO na direção daqueles espetáculos.
Das minhas andanças internauticas, fico sabendo que a peça “Helena fechou a porta”, autoria de Accioly Neto, teve sua estreia no Teatro Copacabana do Rio de Janeiro, em 1950, estrelada por Tônia Carrero e Paulo Autran. Também consigo algumas informações sobre o ator e diretor teatral Luís Tito, que chegou a trabalhar com Cacilda Becker, Walmor Chagas, Célia Helena e Raul Cortez em “Santa Maria Fabril SA” (1958), de Abílio Pereira de Almeida, além de “Os Perigos da Pureza” (1959), ambas as montagens da Cia. de Teatro Cacilda Becker. E no cinema, encontro sua participação em “Caçula do Barulho”, contracenando com Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte e Gianna Maria Canale. Acredito que se possa ter uma ideia da importância daquela viagem do Teatro do Estudante, em 1954, pelo interior gaúcho.
Ainda me ocorrem outras passagens a serem reveladas para ilustrar a história de uma das mais tradicionais casas de espetáculos do nosso Estado, que se ombreia com o Teatro São Pedro, de Porto Alegre, mais o Sete de Abril e o Guarani, de Pelotas. Assim, devo prosseguir numa próxima postagem, atendendo o dever de casa que me foi passado.

terça-feira, 8 de julho de 2014

A FANTASIA DE MEANDROS DO INCONSCIENTE


Quando Juscelino Kubitschek foi eleito Presidente da República, em 1955, a revista “O Cruzeiro” publicou uma fotografia de página inteira da fachada da casa onde nasceu JK, em que aparecia bem nítida a numeração 241 do prédio. Conta-se que, em Jaguarão, o proprietário do Hotel Fronteira na época acreditou nesse número como um palpite infalível e resolveu apostar uma grande soma na “quiniela” uruguaia, vindo a ser contemplado com uma razoável fortuna, a qual poderia ter sido ainda maior se ele dispusesse de mais dinheiro para tanto.
Enquanto isso eu vivia suspirando por um sonho revelador que me possibilitasse uma tranquila independência financeira. Até que um dia me vejo como “chofer de auto de praça”, sentado a uma mesa num Café, em Caxias do Sul, e então me aparece o amigo “Rato”, dono de uma oficina mecânica, para me informar que o veículo que tinha deixado para conserto já estava pronto. Pergunto se dispunha da Nota Fiscal, assim pagaria ali na hora e depois iria retirar o carro onde se encontrava. “Rato” apresenta-me o documento Nº 1201... E eu me acordo imediatamente para anotar aquela surpresa.
Devo esclarecer que nunca fui “chofer de praça” e, até aquele momento, ainda não conhecia Caxias do Sul. “Rato” era um parceiro do Café do Comércio e tinha defeito de nascença nas pernas que o obrigava a caminhar com dificuldade, muito menos chegou a proprietário de qualquer oficina. Só mesmo dos meandros do inconsciente podia aflorar uma história tão fantasiosa, motivando-me a catar todos os “pilas” onde pudesse encontrá-los para jogar com sofreguidão em tudo quanto era tipo de jogo da “quiniela” de Rio Branco: 201 na cabeça, do primeiro ao quinto, aos vinte...
A lista com os resultados oficiais dessa loteria uruguaia costumava chegar a Rio Branco, cidade fronteiriça do outro lado do rio Jaguarão, por volta das 17 horas, através do carro motor que vinha de Montevidéo. No início da rampa de acesso daquela localidade, defronte a Casa Simon, até o plano mais elevado da Aduana, existia um quadro onde era divulgada a listagem dos vinte números sorteados. No lado brasileiro, alguns aficionados postavam-se às margens do rio e aguardavam o apito estridente do trem, chegando na Aduana e chamando-os para conferir a “buena dicha”.
E dali, com esse sinal, iniciava-se a marcha batida dos inveterados da “quiniela” para cruzar a fronteira, na esperança da realização de seus palpites. Numa dessas vezes, misturei-me ao pessoal, o coração batendo acelerado como se quisesse adiantar no caminho. Chegando naquela rampa, consegui avistar o “2” da centena no primeiro prêmio. Pernas frouxas, mal prosseguiam em alguns passos, o suficiente para distinguir o “0” da dezena... Modedocéu, não é possível! Comecei a tremer, as vistas turvas nem alcançavam o algarismo da unidade. Precisei chegar bem perto da tabuleta para enxergar aquele “202” frustrante, em oposição à expectativa da Nota de um sonho.
O fato consumado, relatei a passagem para a roda do meu grupo no Café do Comércio, o personagem onírico ali presente. Pois “Rato”, que tinha sua experiência das "fezinhas" no jogo do bicho, inconformado com essa “furada”, indignava-se por eu não ter procurado sua assessoria: “Tu podes ser inteligente, porém, pouco prático. Não acertaste porque não quisesses...” – E eu ali boiando e querendo adivinhar onde tinha me enganado: – “Presta bem atenção, coisa simples, sem erro, bastava ter somado o “1” do milhar a “201” da centena, ora bolas!”

Nem preciso contar do trauma que se apossou de mim, daí em diante, e me afastou definitivamente dos jogos de azar, afora algumas “tentaçõesinhas”.