“Eu sou de uma terra
de imaginação. O gaúcho, aquela vida segregada na estância, com um convívio
muito limitado, aquilo leva às fantasias, aos sonhos, ao conto, à história...
De muito cedo, a gente está neste mundo de ficção. Eu penso que foi isso que me
levou. Minha cidade, Quarai, é um lugarejo de três mil habitantes. Era aquela
solidão numa savana, uma casa a léguas de distância da outra, naquele campo.
Aquela solidão leva ao sonho, tem que se conviver com alguma realidade e a realidade
que está mais à mão é o sonho, é a ficção” (final
da entrevista concedida por Dyonélio Machado a Ivan Cardoso e Décio Pignatari
em 1978, publicada na Folha de São Paulo de 21.12.1991).
Da obra de outro quaraiense, Cyro Martins, em “O Príncipe da
Vila” (3ª. edição, Movimento/Curso Pré-Universitário, 1987) à página 18, transcrevemos:
“Uma casa aqui, outra lá, tão distantes
uma das outras que as vizinhas precisavam sair do seu pátio para ir encontrar a
comadre, porque de janela a janela não se ouviam”.
Parece-nos que tais trechos podem servir de ponto de partida
para entender Brandino, personagem no qual se centra o desenrolar desta novela.
Lendo em voz alta, escutamos o ritmo da narrativa, muito semelhante ao de qualquer
causo contado nas rodas de galpão. Floreios, detalhes, associação de idéias,
histórias emendadas, fatos paralelos – recurso típico do narrador que escamoteia
os rumos, espicha as falas, mantém os ouvintes atentos e ansiosos enquanto não
lhes desvenda o desfecho. Apesar de se reconhecer, pag. 74: “Causos que se passavam na campanha, mas que
não refletiam necessariamente a alma da campanha, isto é não eram campeiros”.
“Filho de uma penca
de pais e de meia dúzia de mães” (pag.14), Brandino se torna resultante de uma
época de farranchos que glorificavam coronéis e estancieiros, quando as carretas
ainda cumpriam a sua função no transporte de mercadorias. E o trem –
antecedendo o rádio e o telefone – era a marca mais evidente do progresso: ”Era uma festa quando o estafeta chegava, de
quinze em quinze dias, trazendo jornais – o Correio do Povo, a Gazeta do
Alegrete, o Diário Popular de Pelotas e o Correio do Sul de Bagé” (pag. 68).
Cultura tosca formada em leituras esparsas, gerando confusões na
semi-intelectualidade do autodidata: “Só
que não foi o Bilac que esteve no Cati, foi o Coelho Neto” (pag. 40).
Por obras e artes do galo-músico Príncipe, da casamenteira
dona Pitoca, do amigo Cardosinho, do padre José e da prostituta Dulce, o
personagem se encaminha ao fatalismo da própria existência, conforme prenúncios
da mãe Luzia (pág. 46): “Não atinava com
o porquê, mas Brandino desde que viera ao mundo, lhe pareceu fadado a um
destino estranho”. Brandino renuncia à acomodação de Nossa Senhora do
Rosário, às suas origens, à mácula do seu passado e se auto-exila no Paraíso, a
estância-herança da mulher Teresa, onde tenta repetir a simplificação do seu
antigo ofício na Prefeitura: – desça à comissão de pareceres (o capataz
Floriano), suba a instância superior (o próprio). Mas ai ele vai dar um novo
sentido à sua vida, a do itinerante tio Brandino - missionário, curandeiro,
pregador, conselheiro, artista, aglutinador, milagreiro - preenchendo lacunas na solidão do pampa,
compensando carências – ou (pag. 68): “Mais
que isso, descobrindo parentescos, pelo lado paterno, dos quais não tinha bisca
de notícias”.
O desfile de 66 personagens, quase uma lista telefônica
local, a princípio estranho numa história que se desenvolve em 84 páginas,
justifica-se como representação fiel de uma cidadezinha de onde todo mundo
conhece todo mundo. E assim se nominam costureiras, parteiras, lavadeiras,
carpinteiro, hoteleiro, barbeiro, dono da venda, dono da loja, dono do colégio,
delegado e ordenanças. Também comum numa localidade do interior gaúcho, o
tratamento respeitoso na época – comadre Luiza, compadre Anselmo, coronel
Sabino, dona Santinha, seu Ataliba, dona Margarida, dom Alberto, dueña Ângela.
A linguagem é autêntica na medida em que reproduz o toque regionalista desta
narrativa, apesar de não se constatar nenhum abuso em termos que dificultem a
compreensão do leitor – afora 35 palavras, algumas de nítida influência
fronteiriça. As referências históricas (revolução de 1893, tratado de Pedras
Altas em 1923) e geográficas (o Passo, Alegrete, Santa Maria, Uruguaiana, Porto
Alegre) delimitam com precisão tempo e espaço.
Em suma, uma narrativa extremamente densa e de considerável
fluidez na leitura.