terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

OS "PROVISIONADOS" - /Sérgio da Costa Franco/



ChargeBRABO
Já é hoje uma espécie rara, senão desaparecida. Quando eu era jovem e me iniciava na vida forense, ainda eram numerosos os advogados provisionados, desrespeitosamente chamados de “rábulas”, sem formação jurídica regular, mas praticantes do ofício com direitos adquiridos na época da liberdade profissional. O Rio Grande do Sul, em função da constituição castilhista de 1891, tivera a singularidade de admitir que qualquer profissão, inclusive as mais dependentes de formação científica, como a medicina, a engenharia ou a odontologia, pudesse ser exercida por amadores, feitos na prática do cotidiano e licenciados mediante o simples pagamento de um imposto de licença. Daí haver numerosa classe de dentistas e construtores “licenciados”. Não me lembro de ter conhecido “médicos licenciados”, porém conheci vários formados num curso de curta duração (três anos) da Escola Médico-Cirúrgica que certamente exerceram a profissão até a década de 1960. Até sucedia que tais profissionais fossem bem sucedidos e não revelassem incompetência. Mas evidentemente constituíam um perigo no atendimento à saúde humana e no exercício de atividades cada vez mais complexas.
Advogados provisionados representavam risco menor para a sociedade, e houve alguns com excelente desempenho, que até se tornaram famosos como criminalistas. Nas comarcas em que comecei a desempenhar as funções de promotor de justiça, ainda encontrei alguns provisionados competentes, com larga experiência adquirida nos cartórios e salas de audiência. Mas também tropecei com os efeitos do despreparo técnico e teórico. Lembro-me bem de haver sido procurado certa vez pela viúva de um funcionário, para uma consulta inusitada. Seu marido morrera, deixando-lhe apenas a casa de moradia. E o provisionado que estava promovendo o inventário dos bens do falecido dissera que ela não tinha direito à herança, porque fora casada com separação de bens. De fato, o advogado estava habilitando como herdeiras as duas irmãs do defunto e deserdando a viúva. Logo lhe esclareci que, segundo o Código Civil, o cônjuge, em qualquer regime de bens do casamento, é o terceiro na vocação sucessória, após os descendentes e os ascendentes, e, na falta destes, é herdeiro único, prevalecendo sobre os colaterais, como os irmãos e sobrinhos; Pediu-me a viúva que eu interviesse no inventário de seu marido, para fazer prevalecer seu direito, e tive de explicar-lhe que, num feito entre maiores e capazes, não havia intervenção do Promotor de Justiça. No máximo eu poderia conversar com seu advogado e esclarecer sobre o erro em que estava incorrendo. Foi o que fiz, enfrentando alguma resistência, porque o rábula insistentemente alegava que o defunto era casado com separação de bens. Ele custou a entender que o direito de herança não se confunde com meação conjugal. Esta não existia em razão do regime de casamento, mas a vocação hereditária era legal e indiscutível, pela ausência de descendentes e de ascendentes vivos do falecido.. Ele afinal corrigiu o inventário que iniciara, e a pobre viúva pôde ficar com sua moradia. Guardo comigo a carta agradecida que ela então me endereçou.
A formação acadêmica pode fazer falta algumas vezes. Mesmo profissionais sérios e bem intencionados, como era o caso daquele rábula, podem cometer erros grosseiros no exercício da profissão.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

UM APELO BEM SUCEDIDO /Sérgio Costa Franco

Porto Alegre Bairro Menino Deus no tempo das chácaras
O apelo que fiz, numa destas minhas crônicas avulsas, por gente que pudesse compartilhar das minhas lembranças mais remotas do bairro Menino Deus, teve bom resultado. As crônicas em si, que eu dirijo ao restrito público dos meus filhos, netos e amigos próximos, teriam o destino dos natimortos, se não fosse a gentileza de meu conterrâneo e vizinho José Alberto de Souza, que habitualmente as reproduz em seu blog, e do colega Antônio Goulart, que, nesse caso transcreveu minhas reminiscências nas colunas do “Almanaque Gaúcho” em Zero Hora.
Mostrando que memórias emocionadas não são privativas deste octogenário, escreveu-me o Engenheiro Roberto Difini, colega do Curso Científico do Colégio Anchieta em 1945, para acrescentar lembranças muito vivas daquele velho Menino Deus que ambos conhecemos na infância.
Mas as lembranças dele me induziram a espichar o assunto, pois evocaram uma imagem perdida e esquecida da Rua José de Alencar, que muito importa relembrar: a Vila Esmeralda, sede de uma grande chácara que fazia fundos na Rua Costa, pertencia aos avós maternos do Roberto, João Pereira da Costa e sua esposa, casal que eu conheci e ainda conservo na memória. Assinalada por uma grande figueira e por um magnífico portão de acesso, o imóvel estaria hoje preservado como relíquia do patrimônio, não só do bairro, como da própria cidade de Porto Alegre. Ali estava um dos últimos exemplares de sede de chácara, com fisionomia autenticamente rural. Outros imóveis que resistiram à ânsia demolitória, como o solar de Lopo Gonçalves, na Rua João Alfredo, ou o sobrado da Rua Paraíso, no Morro de Santa Teresa, têm o estilo de residências urbanas.
João Pereira da Costa fora comerciante visceralmente urbano, dono da joalheria Esmeralda, na Rua de Bragança, mas sua chácara no Menino Deus conservava as características de um estabelecimento rural, quase se diria uma sede de estância. Creio que, já no início da década de 1980, um de nossos prefeitos nomeados, do período ditatorial, talvez o Thompson Flores, concebeu abrir a Rua Múcio Teixeira até a José de Alencar, disso resultando a desapropriação e demolição da Vila Esmeralda, com seu centenário e estilizado portal, mais o magnífico arvoredo. Parece que se tratava de um projeto urbanístico antigo, repetidamente adiado. Tudo para abrir uma radial tortuosa e estreita, que mais adiante se interrompe. Em lugar da chácara, numa esquina movimentada, está uma prosaica e insossa agência da Caixa Econômica. Atentado modernizante, que hoje, com melhor consciência patrimonialista e ambiental, talvez não se consumasse.
Imagino não sermos apenas nós, eu e o Roberto Difini, que lamentamos a perda da Vila Esmeralda no ambiente do Menino Deus.