sábado, 28 de julho de 2007

Um rico desaforo

Hoje, vinte e cinco de dezembro, / Mil novecentos noventa e nove, / Dessa confraria, como já sou membro, / Faço da fé que montanhas remove, / Humilde maneira de manifestar / Esta minha prece a Nosso Senhor / De gratidão por me proporcionar / Imensa alegria de sempre dispor / Da amizade de todos companheiros / Que tanto me ajudaram na missão / De resgatar ritmos brasileiros / Esquecidos há mais de uma geração.
Por Amor à Música, nosso lema, / A bandeira do nosso entusiasmo, / Nunca esmorecemos nesse tema, / Procurando sempre sair do marasmo.
Assim ficou registrado momento / Tão importante da vida musical / Que não podia cair no esquecimento / Da população da nossa Capital.
Trabalho feito com muito carinho, / Muito desprendimento e garra, / Que abre mais este longo caminho / A romper, do estrangeiro, a amarra.
Recém saímos do primeiro combate, / Mas já temos nossos gloriosos heróis, / Estão aí prontos, nada os abate, / Com suas lindas coroas de girassóis.
Temos o pioneiro Jorge Machado, / Com a sua tradição, a sua história, / Vem mantendo este pessoal agrupado, / Da saudosa boemia, viva memória.
Temos Paulo Sarmento, violonista / Habilidoso, grande entusiasta, / Os cabelos brancos de estadista, / Que honra a sua estirpe, sua casta.
Temos o gaiteiro Paulo Barbosa, / Com seus dedos pesados de camponês, / Mas delicados na poética prosa / Com minúsculos botões, a polidez.
Outro Paulo, de sobrenome Santos, / Com sua moderna guitarra, continua / Jogando melodias por todos cantos, / Avança, insiste e nunca recua.
Temos nosso canhoto Luiz Fonseca, / Leva Cebolinha por apelido, / Tira acordes duma terra seca / Com o cavaquinho tão conhecido.
Palmeira de sobrenome, Luiz outro, / Faz miséria no violão sete cordas, / Artista igual ainda não encontro / Para encher música pelas bordas.
Jota Campelo, o bamba Ceará, / É um percussionista de mão cheia, / Cantando tanto em fá com em lá, / Não compromete na seara alheia.
No pandeiro, temos André Rocha, / Idade de vinte e poucos anos, / Toca serelepe e não atocha, / Grande promessa, sem quaisquer enganos.
Do Paulinho, temos suave surda, / Marcação do ritmo matemática, / Aquela firmeza que não aturda / Quem está ligado na temática.
Também pandeirista, temos Soleno, / Que bate no couro com destreza, / Naquele seu costume tão ameno / De expressar a mais pura beleza.
Teclado e piano, Marco Farias, / Profissional que veste camiseta, / Enriquecendo as nossas melodias, / As cifras marcadas pela caneta.
Ainda o garotão Henry Lentino, / O violão balançando no colo, / Interpreta como um paladino, / Qualquer choro, inesquecível solo.
Arthur de Faria, arranjador maestro, / No piano fez-se presente, brilhou, / Tornou-se na intervenção um destro / Instrumentista, que todos encantou.
Washinton Moreira, no violoncelo, /E Rômulo Chimelli, no oboé, /Só de pensar naqueles dois, me gelo, /Na música clássica, a minha fé.
Temos a voz de Marília Benites, / Gostosa por demais para se ouvir, / Sem que nunca possamos estar quites / Com essa difícil hora de partir.
Temos o grande Fernando Collares, / Esbanjando a sua jovialidade, / Que vem contagiando tantos pares, / De romântico, a habilidade.
E o compositor Guilherme Braga, / Notável cantor dos anos sessenta, / Nestas canções que falam de sua saga, / Desta bonança depois da tormenta.
Maria Teka Terezinha Silva / Representou Jessé, o Magnífico, / Como a envolvente madressilva, / Aceitou o desafio pacífico.
Temos este seresteiro Norberto, / Que se diz Peres, de voz empostada, / A cantar, de peito todo aberto, / Sucessos duma época passada.
Autor do clássico Porto dos Casais, / Que correu Brasil de ponta a ponta, / Sua voz nunca foi gravada, jamais, / É Jayme Lubianca quem desponta.
Do Fernando Rozano, que não falei, / Apresento excelente amigo, / Comentarista, a palavra de lei, / A idéia, muito discutiu comigo.
Do Glênio Reis, não vou deixar de falar, / Comunicador que não se intimida, / Abre espaço, o programa no ar, / Divulga música desconhecida.
Marcelo Sfoggia, o velho mago / Desta captação fonográfica, / Merece o registro, com afago, / Por decodificar nossa África.
Os Gonçalves, Alcides e Antônio, / Jessé Silva, Francisco Campos também, / Que os tenha Deus e não o demônio, / Saudades, nos fizeram imenso bem.
Para todos eles batamos palmas, / Riqueza de caráter, o decoro, / Por terem lavado as nossas almas, / Obrigado pelo RICO DESAFORO (*).
(*) Expressão criada por Luiz Mauro Pinto da Costa.

O velho chateau daqueles rapazes de antigamente

Um puxado de zinco sobre chão batido, pedras e tijolos ali disponíveis, logo se improvisava o fogão. A lata de querozene Jacaré dezoito litros tinha virado panela, já esterilisada pelo uso constante. O peixe – jundiá ou pintado – dividido em postas, se cozinhava ensopado em tempero de salsa, pimenta, alho e vermelhão, afora o sal naturalmente. A água chiando na lata velha, enquanto o trago solto corria de mão em mão, parecia animar cada vez mais aquela gente na fanfarronice dos seus causos.
Não fosse o dono da casa servir pacientemente os seus convidados e estes avançariam famintos na panela indefesa. Assim, o corpo alimentado, é que se lembravam de tratar do espírito: surgiam então, de todos os cantos do barraco, violões, cavaquinhos, bandolins, pandeiros, agês, surdos e outros acessórios imprescindíveis naquele círculo sonoro. As cordas se esquentavam com a afinação dos instrumentos. Uma melodia puxando outra e mais outra e mais outra, o repertório se formava ao natural.
Lá pelas tantas, alguém começava a sentir-se melancólico, recordando alguma dor-de-cotovelo e não resistia àquele clima alternativo de tristeza e alegria. O sujeito se ensimesmava na sua saudade, recolhia-se solitário na sua discrição. Mal se dava conta que os outros se apercebiam da sua fossa e cortando o embalo logo providenciavam em levantar o seu astral. Segredos não existiam entre eles. Que tratasse pois o dito cujo de ir desabafando a sua desdita; esta o atingindo, contagiava o todo ali presente.
A tensão do ambiente carregado, as horas calmas da noite, era chegada a ocasião de mudar os ares – quem sabe encarar a madrugada lá fora e até acordar a causadora daquela perturbação repentina, interrompendo-lhe o sono tranqüilo com uma inesquecível serenata!
Que importaria a distância, lá todos iriam despreendidos ante o compromisso maior da solidariedade e da ventura de se fazerem presentes naquele momento decisivo da vida do companheiro. Lá todos iriam nem que tivessem de gastar a própria sola dos pés. Para voltarem de alma limpa e passos trôpegos, cantarolando as notas e os acordes da melo-poesia que despertaria as pessoas adormecidas, pelo caminho. Provavelmente, haveriam de sentir-se aureolados a andar nas nuvens como arcanjos-seresteiros.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Jorge Maciel - Um figuraço

“Cara, passa no teu apartamento antes de seguir para minha casa e pega o CD de Caminito, com o cantor Jorge Maciel” (da crônica Amadeu Gonçalves, Uma Figura Fenomenal, de Agilmar Machado, no site WWW.CAROSOUVINTES.COM.BR).
Migrando de Jaguarão – a mais meridional não o fossem Chuí e Santa Vitória do Palmar – para Porto Alegre, aqui encontrei vários conterrâneos nas minhas andanças pela Rua da Praia naqueles já remotos anos cinqüenta, constituindo assim turma de amigos com Edar Dutra Monteiro, Flávio Brum, Mário Teixeira de Mello, José Martins de Souza Neto, Jandir Dutra Belém, Nilton Monteiro, Jofre Vidal Dufau e outros mais que deixo de citar para não ocupar toda página com uma extensa lista de nomes. Em nossas conversas na frente da antiga Indiana, volta e meia surgiam as advertências sobre as mordidas do jaguarense Jorge Maciel, a mais comentada de todas aquela da fiança que o Flávio Brum prestou-lhe nas Lojas Renner para aquisição de um terno de roupas e que teve de honrar do próprio bolso. Com o sumiço do Jorge, o Flávio andava no seu encalço para cobrar a dívida. Muitos até desistiam e se compraziam com a situação de vítimas, gozando-me por ainda permanecer invicto – “o Jorge anda te procurando, vais marchar”... Risada geral.
Vamos, pois traçar o perfil dessa figura marcante que ainda não foi registrada no anedotário da Rua da Praia. Filho mais moço de conceituado construtor, com decisivas influências no Partido Trabalhista Brasileiro de Jaguarão – Clodomar Maciel – e irmão de João e Clodomar Filho, todos eles veteranos jogadores do segundo time do glorioso Esporte Clube Cruzeiro do Sul, o Jorge costumava tomar os seus inolvidáveis frangos no arco da equipe estrelada, muitas vezes traído pelas atrasadas do zagueiro, seu mano João, enquanto isso o Clodomarzinho esmerava-se nos cruzamentos da ponta-esquerda, na esperança de que saísse algum gol olímpico. Dizem que o Jorge costumava abrilhantar as noitadas nos cabarés locais, cantando tangos e boleros, muito apreciados pelos boêmios da época, entre eles Peixoto Primo, cuja orquestra de Rio Grande sempre tocava no Clube Harmonia.
Lá pelas tantas, munido de carta de recomendação do velho Clodomar para o deputado Domingos Spolidoro, o Jorge resolveu tentar a sorte na Capital. Pois bem, esse deputado conseguiu-lhe colocação como conferente de estiva no caís do Porto local. Pelo contrato de trabalho, tinha direito a faltar três dias/mês e ele interpretava como se fossem os dias em que havia de labutar, quer dizer, deveria folgar nos restantes. Assim, o deputado Spolidoro via-se em palpos de aranha para justificar as malandragens desse seu peixinho, mas sempre conseguia safá-lo das conseqüências de um desemprego iminente. Nessa ocasião, o nosso amigo Peixoto Primo também tinha chegado de Rio Grande e se encontrava formando o seu conjunto melódico e procurando crooner. Dizem que teria se lembrado do Jorge Maciel, insistindo para que integrasse o grupo e, não sendo atendido, passou o bastão para Fernando Collares, consagrado cantor da época de ouro do rádio gaúcho.
Entra a outra década, morava eu na Pensão Familiar Ludwig, situada na Rua Andrade Neves, quase defronte aos fundos das Lojas Americanas, e me preparava com afinco para enfrentar os exames vestibulares na Escola de Engenharia. Então recebo a visita do Jorge com a sua conversinha mole, dizendo que eu não estava sabendo aproveitar a vida, que eu precisava botar uma mulher neste corpo, que as gurias do seu cabaré na Voluntários estavam ansiosas por me conhecer e coisas que tais. E eu ali ouvindo pacientemente o Jorge e nervoso por estar perdendo tempo precioso de estudo, eis que fui surpreendido pela sua pedida: “Zezinho, vê só o meu azar, a Semana Santa está chegando, a polícia liberou a pensão para receber os castelhanos que costumam viajar por esses dias e eu não tenho uma caixa de papel higiênico, sem essa mercadoria não posso trabalhar. Vinte pila, Zezinho, já me resolve o problema”. Agora, imaginem, se largasse essa grana toda para o Jorge, dinheiro contadinho que mal dava para cobrir as despesas, eu até passaria fome na certa. E ele regateando, ia baixando – dez pila, cinco pila – e dizia que me pagaria assim que los hermanos forrassem-lhe os bolsos. Resisti o mais que pude a essas cantadas, perdi uma tarde de estudos, quando então ele deu-me o bote fatal – “mas ao menos me dá a passagem do bonde”. E não é que ele conseguiu me batizar...
Ai vem Agilmar Machado seguiré tus pasos, Caminito, adiós na voz do cantor Jorge Maciel, nada a ver eu sei, mas mesmo assim é dose!

segunda-feira, 23 de julho de 2007

João Peixoto Primo

De repente, baixa em mim aquele espírito de jovem que já fui, como se a eternidade houvesse chegado. Sensação estranha essa de manter vivas aquelas aspirações que me acompanham há tantos anos. Recuso-me terminantemente a aceitar o LP como obsoleto. Aquela bolacha grandota ainda me provoca o mesmo fascínio de antes. O passado confunde-se todo, é compacto demais para mim. Tanto que já faz um bom tempo, andei comprando um vinil do Primo. Na capa, ele de smoking e gravata borboleta, na elegância de sempre, apenas com a calva já pronunciada apontando-lhe o avanço dos anos.
Pois bem, lá pela década de 50, o Primo tinha uma orquestra em Rio Grande e costumava tocar nos bailes de carnaval do Harmonia, em Jaguarão. Na época, eu me esbaldava na folia, embalado pelo som trepidante do sopro dos metais e da percussão dos tambores. Aonde ia a orquestra, todo mundo seguia. Primeiro, fazendo a volta pelo salão, depois passando pela copa e ganhando a rua numa rápida circulada para refrescar. Antes que o dia clareasse, uma pausa para a moçada renovar as energias, era quando mudava o ritmo e vinha aquele bolero arrastado, os pares dançando de rosto colado, agarradinhos, misturando suores.
Porém, acabou-se o meu tempo no Interior e migrei para a Capital, também chegando junto o Primo. Topávamos vezes seguidas na rua da Rua da Praia, não havia a intimidade, mas sempre partia do Primo a iniciativa do cumprimento; impressionava-me com a sua memória fisionômica. Havia um pessoal conhecido de Rio Grande que tinha servido no 13º. Regimento de Cavalaria, em Jaguarão, o Antonio Ledur Dias, o Helodi Garcia Rodrigues (um dos primeiros locutores da TV) e que privavam da sua amizade, apresentaram-me e ele retrucou: conheço-te dos bailes do Harmonia. A simpatia e o magnetismo pessoal eram-lhe inerentes ao próprio caráter.
Depois vieram a faculdade, as reuniões dançantes nos centros acadêmicos, as esticadas da Arquitetura até a Farmácia, os bailes da Reitoria. A onda romântica dos conjuntos melódicos, Renato, Norberto Baldauf, Flamboyant... De vez em quando, eles ressurgem. O clima descontraído, as horas agradáveis, a gente nem notava os instrumentistas. Eles sumiam na própria música que impregnava o ambiente. Talvez por isso, eu não me lembre de ter ousado minhas primeiras contradanças sob o ímpeto de tais conjuntos. Houvesse notado o Primo entre os integrantes e, por certo, o perceberia sorrindo marotamente.
O passado compacta-se cada vez mais, vai-se uma década, tornei a encontrar o Primo tocando piano no Clube da Aeronáutica, em Brasília.
Em janeiro de 2001, o grupo Os Três de Brasília, constituído por João Peixoto Primo (teclados), Baby (vocal) e Primo Filho (percussão), aqui enxertado por Fernando Collares (vocal) e Francisco Pedroso (guitarra), esteve em turnê por Tramandai, Rio Grande e Capão Novo. Nesta última localidade, junto com o amigo Ernani Kurtz, assistimos ao Show Que Todo Mundo Gosta, quando então pude colher o autógrafo que estava faltando na relíquia daquele disco. Durante o dia, a chuva tinha alagado essa praia e, de noite, a fiação elétrica continuava úmida, dando terríveis choques na guitarra do Chico e não permitindo que este tocasse, apesar do Primo agüentar firme, mesmo com os fiapos da careca em pé...

A polêmica da Usina do Gasômetro

Quando da minha primeira vinda a Porto Alegre, em fins de 1953, fiquei conhecendo o exterior do prédio onde funcionou o Gasômetro. Posteriormente, em 1955, assistindo uma aula do professor Tristão Feijó Ferreira, do Julinho, ele nos falava sobre a operação Caça-Mosquito, que viria a notabilizar a gestão do radialista Lamaison Porto na Secretaria Estadual de Saúde, banindo aquele inseto de todos os bairros da Capital. Ele nos dizia que, até então, a descarga do carvão do Gasômetro, às margens do Guaíba, impedia o desenvolvimento larval e a proliferação de pernilongos nos logradouros próximos (General Salustiano, Vasco Alves, General Portinho, Cipriano Ferreira, Bento Martins, Washington Luís, Demétrio Ribeiro, Fernando Machado, Duque de Caxias, Riachuelo e Andradas). Estive morando (1957) em apartamento num edifício da Rua General Vasco Alves. Do meu quarto que dava para os fundos do prédio, costumava avistar o relógio da Usina, o qual muito administrou o meu tempo. No verão, as noites quentes obrigavam-me a dormir com a janela aberta e habituei-me com o barulho incessante da termoelétrica; acordava-me quando o mesmo parava durante a madrugada. Na ocasião, eu observava as caçambas movimentando-se nos trilhos aéreos e descarregando o carvão no rio. Aí recordava daquela referência do mestre, o sono isento de picadas e zumbidos. Porém, a dúvida pairava: Usina do Gasômetro? Sem outras pesquisas, fui conhecendo a zona, a Volta do Gasômetro (Andradas-General Salustiano-Washington Luís), o bonde e depois o ônibus que por ali circularam. Só podia ser a Usina do bairro Gasômetro.
A polêmica sobre a denominação da Usina que, volta e meia, ressurge em nossos meios intelectuais, traz-me essas reminiscências. Há quem diga que a confusão se deva a alguns prefeitos da Capital – oriundos da fronteira – quando estes apenas referendaram uma tradição popular. Ainda enxergo naquele passado, junto ao Gasômetro, a sede do Grêmio Náutico Gaúcho – essa associação transferindo-se para a Avenida Praia de Belas, as antigas dependências passaram a ser ocupadas pela ABSDAER – ali funcionou a 47ª. Seção da 1ª. Zona Eleitoral, onde votei pela primeira vez.
Ah, ia-me esquecendo das reuniões dançantes do Náutico. A mãe de duas amigas solicitou-me para acompanhá-las. Não sabia bailar. Lá chegando, escassez de homem, sabras-que-te-quiero, uma das damas convida-me para passear no salão. Saio pulando. Ao pé do ouvido, diz-me a parceira para não dobrar o joelho. Obedeço. Agora, vai por mim, ela assente. Problema foi dar conta dos pedidos...

A garota da Rua São Manoel

O bairro Partenon, durante muito tempo, foi meu chão em Porto Alegre, acompanhando as freqüentes mudanças daquela minha nova família. Assim, tive oportunidade de me fixar na Rua Veador Porto, esquina com a São Manoel, defronte ao campo do Geral. Ali perto, tinha uma parada onde eu costumava embarcar no ônibus que me conduzia até o Julinho, sempre por volta de meio dia e meio. Todos os dias, aquele horário coincidia com a passagem de uma garota moreninha, muito graciosa em seu uniforme de blusa branca e saia cinza, provavelmente na saída de uma escola das proximidades, que me tentava com um sorriso sedutor. E eu resistia naquele meu dilema entre perder a primeira aula ou conferir o interesse que ela parecia demonstrar por mim. Até que me transferindo para a Rua Aurélio Porto, deixei de ver a moreninha.
No Colégio, formávamos uma turma da Retaguarda – Nelson Fetter, Jerson Mariante Vieira, Hiparcus Raupp, Gisberto Ingolf Rolff, Flávio Antunes Graziuso e eu – que se deslocava, diariamente, na infantaria dos finais de tarde, desde a Avenida Piratini, na Azenha, até Partenon e Glória, onde se situavam nossos lares. Certa ocasião, vínhamos pela Bento Gonçalves e, cruzando a Luiz de Camões, o Hiparcus, que era o galã do grupo, exclamou: olhem só aquela guriazinha dando bandeira pra gente, eu vou lá... Não mesmo, disse eu, pode deixar que é comigo. Era a moreninha, tinha chegado a minha vez e não ia desperdiçar. Encostei-me a ela, pedi licença para acompanhá-la, ela disse que sim, seguimos caminhando lado a lado, nem chegamos a nos apresentar, apenas declamei:
Perfil carinhoso deste rosto querido
que me inspira somente uma musa divina,
quisera ser algum artista comovido
a reproduzir o teu olhar que me fascina.
Faria todas mais bonitas telas do mundo
se meu pincel guiasse-lhe Da Vinci genial
e lapidaria tua forma escultural
moldada assim no gesso de modo profundo.
Mas n´alma só me brota pobre sentimento
que nunca conseguirei dar a conhecer
embora venha ser objetivo que tento.
E, por tal motivo, aqui procuro escrever
essas palavras que, há de levar, o vento,
pura pretensão de ser poeta sem o ser.
Paramos na Igreja de Santo Antônio, ela falou que ficava por ali, discretamente se despediu e eu me esqueci de combinar um novo encontro. No outro dia, cercado pela patota, foi o Hiparcus quem traduziu o pensamento de todos: Pô, Jaguarão, tu é mesmo peitudo...

Washington Augusto Rego & Cesar Silva

Antes de minha chegada à Porto Alegre, como já me referi anteriormente, tive oportunidade de exercer a função de correspondente esportivo da Folha da Tarde Esportiva, dessa Capital, em Jaguarão, indicado pelo conterrâneo Washington Augusto Rego, conceituado repórter daquele matutino.
O Washington tinha sido funcionário da livraria e tipografia A Miscelânea, propriedade de F. de Souza Resem, acima mencionada. Arrimo de família, morava com sua avó ali perto do trabalho, ajudando no sustento da sua casa. Posteriormente, transferiu-se para essa metrópole, onde fez carreira na imprensa local.
Recordo-me das suas idas à terra natal para visitar sua querida vovó e também abraçar os velhos companheiros de serviço, de cujas origens muito se orgulhava.
Pois, assim que aqui cheguei, procurei o Washington na redação da Esportiva, em visita de cortesia, E ele, sem que o pedisse, dispôs-se prontamente a me recomendar para uma colocação no mercado de trabalho.
A partir daí, em alguns fins de tarde, passei a freqüentar as dependências daquela redação, quando ele me falava para que começasse ali como revisor do jornal ou que fizesse plantão na escuta dos jogos do Rio e São Paulo, redigindo as notícias de lá, ou que ainda poderia me levar até o Mário Caminha, diretor do antigo Jornal do Dia, para aí iniciar atividades jornalísticas.
Porém, envolvido com meus estudos no Julinho, não cheguei a concretizar aqueles seus planos. No entanto, ficou aquela vivência de chegadas na Redação, até o horário da saída para acompanhá-lo no regresso á sua residência na Rua Riachuelo.
Naquele frenético ambiente, avistava grandes nomes da Caldas Júnior, tais como os irmãos Borges Fortes, o baixinho Edson Rei do Furo Pires, o gigante do esporte amador Amaro Júnior, o secretário-geral Manoel Amorim de Albuquerque e outros tantos.
Mas confesso que uma figura de office-boy despertava-me a curiosidade, circulando com desenvoltura entre as inúmeras mesas e recolhendo a matéria a rodar.
Era um jovem magro, esguio e alto, o qual depois viria a ascender, por esforço e mérito próprios, justamente naqueles planos com que o Washington costumava me acenar.
Deparei-me, há algum tempo, com o falecimento prematuro de César Silva, aos 65 anos, o que me causou profunda tristeza por deixar uma lacuna como último remanescente daquela época saudosa.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (XIV)

Concluído o ginasial e prestes a cursar o científico no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, meu tio Cantalício informou-me que o meu padrinho Dr. Alfredo de Mello Tinocco estava me oferecendo uma carta de recomendação para ser entregue ao deputado Dr. Poty Medeiros. Orgulhoso, agradeci a gentileza e declinei da mesma por não julgá-la necessária. Chegando à Capital, fui acolhido na residência de Lucy, Hidalgo e Dª. Olga, mãe dele. Ali, passei a levar uma vida calma e equilibrada entre o lazer e o estudo. Até que, uma noite, contemplando o retrato da minha mãe, falecida aos treze dias do meu nascimento, na tentativa infrutífera de me lembrar do seu rosto, sentado à mesa da sala, dei um soco nesta para me inspirar: Como o cego/ ante a luz que lhe restaura
a visão perdida... Como o surdo/ ante o som que lhe propaga
a melodia da vida... Como o mudo/ ante a ocasião de murmurar
a palavra refletida... Assim eu/ oxalá pudesse/ tornar a minha mente
a imagem esquecida no momento em que,/ na encruzilhada da vida, nos separamos/ eu e minha mãe querida. Enviei esse texto para meu tio Cantalício, em Jaguarão e ele me escreveu: Amar aos dezoito anos/ e ser poeta, mulher, é desvendar os arcanos/ que não os desvenda quaisquer.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (XIII)

Em 1952, a minha prima e irmã de criação Lucy casou com José Hidalgo Filho, que era tesoureiro do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, na agência local, o casal residindo alguns meses em Jaguarão até se transferir para Porto Alegre.
Foi quando adquiri e guardei exemplares da Revista do Globo com a série de reportagens sobre o fenômeno Lupicínio Rodrigues e aí comecei a bater horrivelmente em caixa de fósforos, irritando o esposo da minha prima, que me desestimulava qualquer pretensão melódica – ouvido deficiente, falta de ritmo, que eu cairia no ridículo.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (XII)

Outra das influências marcantes que recebi foi a do Seu Arcanjo, o Rafael Pinto, tipógrafo de A Miscelânea. Debruçado sobre as caixas de tipos, costumava colocar-me a seu lado, tentando arrancar-lhe os segredos da arte gráfica. Esse cidadão era metido a compositor e batucava naquelas caixas, quase as empastelando. Por osmose, eu ia me formando como gráfico e músico de araque e, de lambujem, aprimorando a ortografia que ele me ajudava a corrigir.
Lá por 1959, estive algum tempo na gerência do jornal A Fôlha que era composto e impresso pelo Seu Arcanjo e eu fazia as revisões: primeiro do material em que se passava um rolo de tinta de impressão, colocava-se o papel úmido por cima e batia-se com a mão sobre o papel para marcar no mesmo o texto; depois montavam-se as chapas de duas páginas que eram colocadas na impressora, tirando-se então a prova para a revisão final. Além disso, costumava colocar em prática as minhas idéias sobre diagramação, sempre assistindo seu Arcanjo na paginação do jornal sob seus protestos - guri, eu te vi nascer e agora queres me ensinar o ofício - de mestre desafiado pelo discípulo.
Certa ocasião, eu tinha feito a cobertura da Exposição Feira da Sociedade Agropecuária e redigi a matéria, descrevendo as evoluções da Banda Marcial do Colégio Gonzaga de Pelotas na abertura do evento. Banda Marcial pra cá, Banda Marcial pra lá, as letras a e u vizinhavam na caixa dos tipos. Tiramos a primeira prova, na sílaba Ban onde tinha o a aparecia o u que logo corrigi. Aí foi para a impressora e continuava a troca de letras. Por via das dúvidas, providenciei pessoalmente nessa correção, saindo imaculada aquela Banda Marcial do que Seu Arcanjo havia aprontado...

Qual a razão deste meu gosto pela música? (XI)

Em Jaguarão, lá pelos anos cinqüenta, o nosso contemporâneo no Ginásio – Pedro Jayme Bittencourt, filho da professora Delícia e do jornalista Guadil Bittencourt – poeta, jornalista, escritor, boêmio e ativista político como todo estudante, era um dos intelectuais que mais se destacava no cenário cultural da cidade.
Duma feita, chegou-me às mãos um de seus poemas em que senti a musicalidade latente:
Eu bem sei que esta vida/ é falsa, é fingida
é cheia de mal,
mas eu sei que meu sonho, / embora tristonho
não morre banal.
O meu sonho é mais forte/ que o pranto, que a morte
e que a vida também.
O meu sonho mais terno/ nasceu no inverno
ao lado de alguém.
O meu sonho é uma história/ das muitas sem glória
que o tempo escreveu.
O meu sonho tão lindo/ que ergueu-se sorrindo.
chorando morreu.
O meu sonho é na vida/ a ilusão de um suicida
que nada mais tem.
O meu sonho é a esperança,/ é uma velha lembrança,
é a saudade de alguém.
Palavra que eu cantarolava essa letra e tinha vontade de colocar uma música na mesma, se tivesse competência para tanto.
Falecido há pouco tempo, o Pedro Jayme exerceu advocacia em Pelotas, deixando sua marca em vários julgamentos que participou.
Cheguei a lhe telefonar uma vez, recitando O Meu Sonho: perguntei-lhe se conhecia tais versos e de quem era a autoria dos mesmos; como desconhecesse, surpreendeu-se quando lhe revelei o próprio nome e me agradeceu por tê-los guardado na memória durante tanto tempo.

Qual a razão deste meu gosto pela música? ( X )

24 de agosto de 1954 – suicídio do presidente Getúlio Vargas, Pedro Bartolomeu Ribeiro, o Tutuca, petebista fanático, compunha um samba externando sua indignação contra Carlos Lacerda, letra e música bem elaboradas, chamava atenção de quem o escutava.
Ele era um dos integrantes do conjunto O Ginasiano, também composto por Luiz Carlos Bode Silveira (acordeão), Luiz Fernando Cassal e Luiz Elder Franco (violões), Eulálio Pato Faria (cavaquinho) e Oscar Godofredo Porraço Porciúncula (percussão), que costumavam se apresentar em festas e eventos beneficentes ou sociais.
Tal grupo frequentemente interpretava as composições do Tutuca, uma das quais funcionava como sua característica musical:
Trovejou, relampeou.../ em seguida choveu.
Trovejou, relampeou.../ em seguida choveu.
Chuva malvada/ que chegou no carnaval
e estragou a batucada/ que todos era a tal...
E agora/ eu não sei o que fazer,
os cordões já foram embora/ e deixaram de bater...
Em despedida/ o povo canta o samba seu:
trovejou, relampeou.../ em seguida choveu.
Eu não me conformava com tanto talento desperdiçado e insistia com o Tutuca para que encarasse a divulgação da sua obra; ele nem se importava, tantos obstáculos pela frente, tinha mais de suportar a maldição da sua verve que jorrava ao natural, enquanto o seu vizinho Paulo Soares da Silva esforçava-se para juntar a papelada de versos rabiscados e quase perdidos

Qual a razão deste meu gosto pela música? (IX)

Nesse tempo, vivenciava um amor platônico por misteriosa Menina de Casaco Verde (título de uma canção que pretendia compor), seguia-lhe os passos, a timidez não me deixava aproximar dela, ficava esperando uma oportunidade no carnaval. Ela arranjava namorado e brigava no fim da folia; no outro ano, faziam as pazes – terminaram casando.
O meu escapismo consistia numa maneira de me fazer notado: passei a fazer crônica esportiva no jornal A Folha, tornei-me correspondente da Folha Esportiva de Porto Alegre, integrei a equipe U7 de Esportes da Rádio Cultura, criei as publicações escolares O KCT (na 3ª. Série) e O Ginasiano (na 4ª. Série), fundei o Esporte Clube Tuiuty para disputar jogos na Várzea, só faltava andar com colares e miçangas pendurados no pescoço...
Na redação de O KCT, era meu colaborador o colega Luiz Cerqueira Mano (Manivela) e juntos satirizávamos o acontecido no momento – ele pretendia escrever um romance sobre uma tal Dama de Cinza, seu rabicho na ocasião.
Fatos e Boatos era uma das seções daquele semanário e eu resolvi assuntar sobre a própria desgraça: Que o Dutra (meu apelido) faz letras para samba-canção, é fato. Mas que se consegue musicá-las, é boato.
Pois não é que o meu amigo Eulálio Delmar Faria, o Pato, lendo o comentário, mordeu-se com a ironia e, passado algum tempo, convidou-me para ir até sua residência, onde dedilhando a viola, mostrou-me a melodia que tinha composto para Partir, tornando-se assim minha primeira parceria musical

Qual a razão deste meu gosto pela música? (VIII)

Certo dia, ainda adolescente, isolei-me numa das peças lá de casa e, sem querer, vi-me num palco imaginário com uma fabulosa orquestra e comecei a arranjar a disposição dos instrumentais a fim de obter os melhores efeitos sonoros para a platéia e, assim que alcancei o resultado em vista, iniciei a reger aqueles músicos brilhantes e as notas perpassavam-me na mente em êxtase.
Lápis e papel na mão, as palavras anotadas fluíam ao natural:
Partir/ ter de te dizer adeus/ e sentir falta dos lábios teus...
O que resta após despedida/ nada mais é do que a saudade,
lembrança daqueles momentos/ que tivemos de felicidade.
Partir/ ter de te abandonar/ com a esperança de voltar...
Vou-me embora pra bem longe de ti/ com o coração em pedaços,
pois minha maior vontade/ seria querer-te em meus braços.
Sensação de perda, vazio existencial, sei lá o que me ocorreu naquele momento.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (VII)

Assim, apesar de introspectivo, posso dizer que, cercado pela agitação de tantos ruídos urbanos, os mesmos sempre soaram para mim como uma sinfonia, contribuindo bastante para me despertar uma provável paixão sonora.
Ainda hoje, ecoam nítidos os acordes de é com este que eu vou sambar até cair no chão, aquele samba de Pedro Caetano que ficou gravado em minha memória, desde o tempo em que seguia o bloco Marujos do Amor, comandado pelo incrível folião Heponino Costa, através das ruas de Jaguarão.
Ou então ia assistir a passagem do Troveja Mas Não Chove, o cordão do Curto, precedido pelas evoluções das asas imensas do morcego do Ari, seguido pelo carro da Arara – arara aí vai, arara aí vem – que, dizem as más línguas, certa ocasião, obrigou a que se aumentasse a altura do portão da garagem onde fora construído para sair à rua.
E ainda tinha a borboleta do Rosa que abria caminho ao passo imponente do seu Teodoro, presidente perpétuo da Sociedade 24 de Agosto, dirigindo o tradicional Bataclã.
E aí me animei a botar na rua minha fantasia de cow-boy, calça, colete, chapéu e canana para revólver de chumbo, máscara preta tipo zorro, que eu mesmo confeccionei com a embalagem das resmas de papel da tipografia costurada em barbantes. Saí de fininho. Quando o pessoal em casa me viu na avenida, eu estava sendo depenado pela molecada, chô mascarado, deixando-me de cuecas.
Depois, comecei a sassaricar nos bailes do Clube Jaguarense, cujo presidente, Comendador Arnaldo Dutra, mandava-me permanente para todos os dias de folia a fim de preceder a comparsa.
Na rua, desfilávamos fardados com camisetas de time de futebol, correndo como se estivéssemos entrando em campo, junto com alguns aspirantes cariocas do Regimento que batiam triângulo ao estribilho de Dim-dim-dim, saravá pai Joaquim ou então nos ensinavam a cantar Oi, iáiá, cadê o vaso, / o vaso de fazê cocô? / Eu vou lhe contar um caso, / eu caguei no vaso, / me limpei co’a flô. / Sacanage, sacanage / e você não sabia / que o vaso era só / de fazê lavage. Por pouco, pouco, não apanhamos da assistência.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (VI)

Nas férias, o nosso sobrado lotava recebendo os filhos e netos de Cantalício, muitos deles nascidos ali mesmo.
Era a Nilza e o Cesário, prolíficos por natureza, com Evandro, Graciema, Cesário Filho, Graciara, Gracíola, Gracília e Gracira, seus filhotes.
Luiz Cesário da Silveira, casado com a Nilza, já falecido, iniciou sua carreira militar servindo como aspirante no 13º. RCI, chegou a coronel na ativa. Foi o primo carnavalesco que costumava reunir uma turma de tenentes, toda emperiquitada, para sair fazendo farra pela rua.
Cliente privilegiado da Gruta, cujo dono, o saudoso Domingos Isaias Leite, tinha o apelido de Camões por ser português e caolho como o poeta patrício, o Cesário não resistia aos apetitosos pratos expostos na vitrine daquele restaurante e sempre atravessava a rua para saborear daquelas iguarias, não obstante reclamasse dos preços praticados, chamando carinhosamente aquele de ladrão e por aí afora.
Pois este mesmo Cesário, gozador emérito, certa feita estava na sacada quando avistou o Camões na porta da Gruta, correu ao banheiro, voltou a tempo de pega-lo atravessando a rua em diagonal ao Café e, aos gritos de Ladrão, Ladrão, pega esta, lançou-lhe uma serpentina... De papel higiênico.
Depois, começaram a aparecer o Anysio e a Lecy, sua primeira esposa já falecida, e os rebentos José Augusto, Lia e Luiz Augusto.
Em seguida, foi a vez da Lucy e do José Hidalgo Filho, já desencarnado, geradores da prole de Maria da Graça, Átila, Lorena e as gêmeas Maria da Luz e Anaí.
E, por último, do segundo casamento do Anysio com Mirnaloy, também já falecida, passaram a habitar a casa seus filhos Anysinho e Quênia.
Ali também residiram, até morrerem, a mãe e um dos irmãos de Cantalício, Delfina e Modesto.
Eram freqüentadores assíduos da casa o irmão e o cunhado de Florisbela, João Teixeira no jogo da bisca do final de semana, e Joaquim Mello, português viúvo de Maria José, sempre exaltando as vantagens da sua pátria.
Com eles, convivi boa parte da minha existência.

Qual a razão deste meu gosto pela música? ( V )

Preciso esclarecer que, órfão de pai e mãe, José Dalberto e Maria Francisca, fui criado como filho pelos meus tios Cantalício e Florisbela, que me acolheram em sua residência em Jaguarão.
Era um sobrado, onde funcionava a livraria e tipografia na parte térrea, sendo a parte de cima ocupada como moradia da família e situava-se na esquina das ruas 27 de Janeiro e Andrade Neves, a bem dizer o coração da cidade, pois ali também estavam localizados o Banco do Estado do Rio Grande do Sul, o restaurante Gruta Jaguarense e o Café do Comércio, tradicionais pontos de encontro da população.
Contíguos ao nosso prédio, tínhamos a Prefeitura Municipal, pela 27, e o Snooker do Oliosi, pela Andrade Neves. O sobrado possuía seis sacadas, cinco das quais davam para a rua principal, a 27, e dali podia-se observar todo o movimento urbano.
No carnaval, não se dormia a noite inteira e ficávamos assistindo de camarote o desfile dos blocos carnavalescos e dos carros alegóricos, além do corso das rainhas dos clubes Harmonia, Jaguarense, Caixeiral, Instrução e Recreio, 24 de Agosto.
Na época, os principais blocos carnavalescos eram o Bataclã, os Marujos do Amor e o Troveja Mas Não Chove, que costumavam se apresentar durante o dia, antes dos desfiles, na frente das residências para angariarem recursos ou para agradecerem àqueles que tinham assinado os seus Livros de Ouro.
Nesse casarão, aconteceram os casamentos das filhas de Cantalício - Nilza e Lucy - e da minha irmã Ivanira que contraiu matrimônio com José Pacheco, já falecido.

domingo, 22 de julho de 2007

Qual a razão deste meu gosto pela música? (IV)

Lá vou eu para o Ginásio de Jaguarão, o Ipinha de saudosa memória: posso dizer que, nesse tempo, começou a se manifestar em mim a paixão pela música.
Ouvinte da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, da Rádio Tamoio, da Rádio Tupi, cujas ondas eram mais fáceis de sintonizar do que as rádios de Porto Alegre, encantava-me com os famosos programas de auditório daquela época, com a constelação de seus astros maiores: Francisco Alves, Orlando Silva, Emilinha Borba, Marlene, Aracy de Almeida, Francisco Carlos e por aí me perdia. A comoção com a morte do Rei da Voz, que rendeu inúmeras reportagens através da revista O Cruzeiro – estava cada vez melhor no antológico jargão publicitário do meu grande amigo Pedro Fagundes de Azevedo. Aquela memorável serenata dos quatrocentos Violões em Funeral transmitida pela Rádio Farroupilha de Porto Alegre. E a gente ainda escutava, durante a madrugada, os fantásticos Ritmos da Panair através do som potente de um rádio Phillips holandês, tipo capela, que invadia nossos quartos vindo do restaurante Gruta Jaguarense, situado na esquina em frente ao sobrado onde residíamos. No cinema, assistindo as chanchadas da Atlântida, impressionava-me com a interpretação de Silva Neto para Nervos de Aço, cuja autoria ignorava fosse de Lupicínio Rodrigues, ilustre desconhecido para esse analfabeto musical. A ZYU-7 Rádio Cultura de Jaguarão tinha seus programas vesperais de calouros, aos sábados, apresentando as atrações locais no Cine Theatro Esperança, onde pontificavam o regional dos filhos do seu Agostinho – Canhoto, Lourenço e Moacir – e mais o violonista Nery Antonini, além de Napoleão, Severo e Adalberto Mendes, notáveis seresteiros, cuja fama propagava-se por toda nossa Zona Sul do Estado e estendia-se Uruguai adentro. Assim, deleitava-me com esse espetáculo e aproveitava para apreciar a beleza dos cabelos louros encaracolados e pele rosada da jovem Eva Maria Arismendi, nossa futura Miss Rio Grande do Sul, que sempre se fazia presente na platéia acompanhada do Claudinho, seu irmão menor.

Qual a razão deste meu gosto pela música? (III)

No ano seguinte, passei a ter aulas particulares com a professora Dinah e ainda fiz preparatório para admissão no Ginásio. Não me achando com base suficiente, resolvi esperar mais um ano, estudando com a professora Delícia Bittencourt e assim passando em 2º lugar para ingressar no ensino médio.
Certa ocasião, a mestra nos leu um texto de livro didático e mandou-nos descrever com as próprias palavras o que ela havia lido. Eram minhas colegas de aula Norma Oliosi e Marta Alexandrina Nobre. Executamos as tarefas durante o resto da aula, entregando-as quando concluídas.
Dia seguinte, a professora Delícia abriu a aula, lendo a minha redação. Mas não foi essa a história que a senhora nos contou, disseram as queridas parceiras. Realmente não foi essa, mas eu fiz questão de ler o que o José Alberto escreveu, para que vocês tomassem conhecimento da sua criatividade ao modificar o texto original. Assim, essa inesquecível professora foi quem teve a bondade de me chamar atenção para um potencial, até então desconhecido por mim.

Qual a razão deste meu gosto pela música? ( II )

Por essa época, freqüentava o curso primário no Colégio Particular Egydio Borges, cujo diretor era o professor Nelson Bambá Ricardo, a quem achei que devia mostrar aqueles meus primeiros passos literários, o que resultou no codinome Poeta das Águas Doces com que me batizou.
Nesse colégio, fiquei até o terceiro ano primário, tais as dificuldades de atenção nas aulas. Na classe, os alunos mais compenetrados eram colocados nas carteiras mais à frente e eu era mandado para a última do fundo.
Um caso bastante hilário foi aquele em que o professor Bambá escreveu sapato no quadro negro e mandou para eu ler o que lá estava escrito; respondi-lhe batata. Furioso, ele veio correndo até onde eu estava – estás debochando de mim, sapato é o que está escrito ali. Mas, professor, daqui eu não enxergo direito. Mas como? – e chamou um outro aluno para conferir e este viu perfeitamente bem donde eu estava.
A nossa classe era mista: gurias à esquerda e guris à direita. Por via das dúvidas, ele achou por bem colocar-me na frente... das gurias, para não preterir aqueles discípulos mais destacados.
Algum tempo depois, eu tinha pegado uma escada para chegar mais perto de um cartaz afixado na parte de cima de uma das paredes da livraria, quando chegou meu primo Anysio e sua esposa Lecy, estranhando o que eu estava fazendo: eu quero ler o que está escrito aqui. As letras são garrafais, como é que não pode? Foi aí que o pessoal lá em casa deu-se conta da minha deficiência visual e me encaminhou ao oftalmologista Dr. Mário Garrastazu Médici, que me diagnosticou grau cinco de miopia e receitou-me as lentes adequadas.

Qual a razão deste meu gosto pela música? ( I )

Problemas de audição e de visão, nenhum dom em especial para o canto ou a execução de qualquer instrumento, seja de cordas, de sopros ou de percussão.
Lembro-me que costumava trocar idéias com meu tio e pai de criação, o saudoso Cantalício Resem, em minha opinião excelente poeta, cuja obra pessoal não chegou a ser preservada, perdida que ficou em inúmeras gavetas: dele sempre me acudia cada vez que procurava alguma rima para os versos que costumava ousar e ele nunca deixou de me incentivar por mais precária que fosse a minha composição. E assim foi-me despertando o pendor pelas letras.
Autodidata, aconselhava-me a ler os bons livros que me repassariam as melhores noções de gramática. Além disso, proporcionava-me ora a sua rica biblioteca de Juiz de Direito, ora os recursos da livraria, da tipografia e do jornal de propriedade da sua esposa, também saudosa Florisbela de Souza Resem.
Aliás. embaixo das duas vitrinas, onde se expunham as novidades recebidas, situavam-se depósitos fechados que recebiam os saldos de livros antigos e ali eu costumava entocar-me como rato de sebo, procurando algo de meu interesse.
Essa livraria, denominada A Miscelânea. era bastante freqüentada como ponto de referência de viajantes que chegavam à cidade, muitos deles procurando o jornal A Folha para noticiar suas atividades. Recordo-me do grande poeta Cornélio Pires quando esteve em Jaguarão para proferir conferência espiritualista numa das entidades locais e eu atrás do balcão, ainda menino, também servindo de interlocutor na sua conversa com meu tio.
Quando chegou à cidade o médium Capitão Pacífico, de Porto Alegre, esteve dando atendimento na sala de jantar de nossa casa, preparada na ocasião para receber aqueles necessitados.
Esse meu tio, uma vez, levou-me para assistir a uma peça no Cine Theatro Esperança, da qual teve que se retirar mais cedo porque eu comecei a bater pé como fazia nas matinês do cinema.
Outra vez, também me levou para um churrasco na estância do Coronel Agenor Garcia. Caminhos de chão batido, dormi algumas horas até chegar lá, em pleno interior do nosso município, ali senti-me miúdo no meio de tanta gente importante. Este universo descerrava-me os horizontes da cultura.

Alô, amigos, estou dando as caras!

Há tempos atrás, visitando o tenor conterrâneo Jarbas Tauryno, que se encontrava na casa de sua mãe em Jaguarão, falávamos da sua carreira artística, objeto de entrevista no programa Sem Fronteiras, apresentação de Glênio Reis na Rádio Gaúcha, quando ele me inquiriu sobre meu interesse pela música, o que me despertou esse gosto. Foi então que me dei conta de haver constituído, sem querer, uma vivência de relações e amizades no círculo musical. Aí expus da minha dificuldade em responder a questão por se tratar de uma longa história para ser resumida naquele momento.
De maneira que agora decido-me a escrever um texto memorialístico, anotando as lembranças que digam respeito ao assunto, procurando ser o mais objetivo no tratamento dessas abordagens, as quais devem tornar-se uma ponte de afinidade com aqueles que me concederem a honra de se comunicarem comigo. Assim é que procurarei descartar todas e quaisquer subjetividades que venham a bloquear essa nossa ligação. Perdoem-me os caros amigos por não estabelecer uma cronologia exata nesses relatos, de vez que terei de resgatá-los nos recônditos da memória.
Por favor, relevem o título deste blog, longe de mim qualquer pretensão como poeta, apenas uma situação a que não pode fugir o mais comum dos mortais. Aliás, a escritora Raquel de Queiroz, numa de suas últimas crônicas, já no final de sua centenária existência, falava que não envergonha ser um romancista menor, um cidadão menor, uma pessoa do comum...