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Prédio do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, na Rua Riachuelo, em Porto Alegre. |
Março de 1955. Primeira aula no Júlio de
Castilhos, ali estava eu, um dos privilegiados que ingressara no educandário,
valendo-se da condição de oriundo de ginásio estadual e, portanto, dispensado
do exame de seleção para o curso Científico. Com problemas auditivos, escolhi
uma das classes bem à frente. No estrado, sentado à mesa, o professor Magadan
tinha acabado de fazer a chamada dos alunos; olhou para mim e me convocou para
chegar ao quadro negro. Com ar enérgico, ordenou-me para traçar uma reta na horizontal,
dispondo para tanto de uma régua. Depois, deu-me um compasso, para dividir ao
meio a reta. A prova me era desconhecida e tentei resolvê-la com o compasso
fechado, utilizando-o como unidade de medida: deu um compasso e mais uma parte
que marquei a giz no mesmo. Aí, comecei a medir a palmo e a dedo o compasso...
O mestre gritou: “pode parar por aí”. Em seguida, perguntou-me: “de onde você
vem”? Respondi-lhe que de Jaguarão. A classe inteira caiu na gargalhada, um
gaiato do fundo, exclamou:
– Aí, Jaguarão!
– Silêncio, vamos fazer silêncio! – Era o
Magadan botando ordem na aula.
O pessoal então se aquietou para ouvi-lo
falar:
– Eu posso chamar qualquer um de vocês
aqui na frente e estou certo de que irão desempenhar bem pior do que este
rapaz. Infelizmente, essa é a realidade do nosso sistema de ensino no Ginásio.
Porém, o estrago já estava feito: ganhei
o apelido de Jaguarão, que tive de carregar durante todo o tempo em que estive
no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e mais ainda na Escola de Engenharia da
UFRGS, aliás, com muito orgulho.
Aquele meu primeiro ano no Júlio de
Castilhos foi terrível como período de adaptação. Imensas dificuldades em
Química e Física, aos trancos e barrancos nas demais matérias, com exceção de Desenho
e Espanhol (era da Fronteira, tinha que dar banho), nas quais me destacava. O
Julinho na época funcionava no prédio do Arquivo Público, na Rua Riachuelo, e
tinha comunicação com os fundos do Teatro São Pedro.
As aulas à tarde eram de turmas
masculinas e, de manhã, femininas. Bilhetinhos deixados nas classes,
iniciavam-se romances. Às 13 horas, eram feitas as primeiras chamadas. No
verão, aulas modorrentas, duras de suportar. O professor Athaualpa Ig Cibils,
adepto da decoreba (para aprender Química tem que decorar), no primeiro período,
pedia-nos um pouco de paciência para dar a matéria nos quinze minutos iniciais,
reservando os restantes para uma sesta geral, que ele liderava no maior dos
roncos.
Devo confessar que a Química Inorgânica
não correspondia a todos os meus esforços: a única prova em que consegui alguma
nota foi decorrente de uma questão sobre cálculo estequiométrico, álgebra pura,
o meu campo; de resto, zero, zero e mais zeros. Fim de ano, lutava para defender
a média que me possibilitaria a chance de uma segunda época. Já tinha rodado em
Geografia, cada pontinho nas demais matérias era importantíssimo para atingir
meu objetivo. No exame oral de Português, tive uma sorte tremenda: detive a
estudar sobre a Língua Portuguesa no mundo, e este foi o ponto que me tocou
para dissertar. E os três mestres, cada um com seu examinando, pararam a me
escutar na explanação. A professora Idália, decepcionada com seus pupilos que
me antecederam até aquele momento, dispensou-me então do seu exame, dizendo que
acompanharia a média dos outros integrantes da banca, por sinal uma boa nota. E
lá fui eu, dois ou três dias depois, enfrentar o oral de Química.
O mestre Athaualpa detestava desperdiçar
suas férias num exame de segunda época. Assim, foi-me dando as suas indiretas
para saber com quantos paus eu faria minha canoa. “Não tem jeito, professor,
qualquer nota que me der, serve”. E ele insistindo até que lhe revelei – onze. “Mas
como, seu cretino, e ainda tens coragem de
comparecer aqui; manda-te e vê se não aparece mais na minha frente”. Saí
com o rabo entre as pernas. Quando as notas foram publicadas, verifiquei aquele
meio ponto, para me arrasar mesmo.
Daí, passei a concentrar todos os meus
esforços em Física, a última prova, a esperança derradeira. Joguei todas as
minhas fichas nesse jogo. Terminado o exame, conseguimos com o professor
Dillenburg para fazer a correção logo em seguida. Uma hora depois, abriu-se a
porta da sala trancada e surge o mestre com um pedaço de papel na mão. “Deu,
deu, deu, não deu, deu”... – ele informava se a nota necessária tinha sido
alcançada ou não. A periódica 6,666... delimitava a minha linha fatídica e
tinha dado, o que depois veio a ser confirmado na correção final – 6,67. Dessa
forma, com média de 5,0006 garanti aquela segunda época.
(in "Julinho 100 Anos de História"/Org. O. R. Lima e P. F. Ledur - P.Alegre: AGE, 2000).
4 comentários:
Parabéns, Souza, interpretaste toda a angústia de quem passou maus bocados na transição do Ginásio para o Científico...
Parabens pela tua luta e teu esforço para vencer as adversidades.
Hoje, como escritor e Engenheiro, colhes os frutos da tua garra trazida lá de Jaguarão onde aprendestes a lutar com destemor e objetivos bem definidos.
Um abraço, Hunder
Poeta das Águas Doces ou Poeta Jaguarão
aquele menino do educandário Júlio de Castilhos, um dia se tornaria o Lendário que muito ousa, o meu amigo José Alberto de Souza!
Raimundo Cândido
Parabéns, Souza.
Esta foi, sem demérito para as demais, a melhor crônica tua que já li.
Deliciei-me com a autenticidade e o humor que revelaste.
Grande abraço.
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