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Como não tenho mais jornal para escrever, cedo ao impulso escrevinhador para cometer uma ou outra crônica extemporânea e chatear os amigos e parentes. Abraço do Sérgio (Costa Franco). |
A MIXÓRDIA URBANA
O que vejo da minha janela não sugere poemas
de amor nem de deslumbramento com a natureza, nem mesmo recordações amenas de
minha distante infância no Menino Deus da década de 1930. É um retângulo feio
de imagens heterogêneas, onde se mesclam modernos prédios de apartamentos à
direita, do outro lado da avenida, com extensos telhados mal conservados,
destacando-se o do edifício que faz paralelo com o meu, todo remendado com uma
capa aluminizada, que brilha ao sol e ofende os olhos. Mais além vejo antenas,
caixas d’água e as copas de algumas esgalgadas palmeiras, com as quais outrora
se pretendeu arborizar e humanizar um bairro que fora rural e bucólico até o
fim do século 19.
A dificuldade de conseguir apartamento que
alojasse a biblioteca nos obrigara a uma demorada e penosa peregrinação pelas
imobiliárias, até descobrirmos este simpático 402, longe do tráfego e dos
barulhos da avenida, na face lateral do Edifício Palácio de Versailles.
Internamente cômodo e apropriado às nossas necessidades, o apartamento nos
condenava, entretanto, a essa prosaica e melancólica paisagem, longe de
parques, de verdes e de quaisquer outros atrativos urbanos. Quando, no momento
de fechar negócio, minha mulher lamentava essa pobreza da paisagem, o corretor
Lorenci, com aquela infatigável capacidade de argumentar, que é própria do
ofício, apontou para as esbeltas e despojadas árvores da avenida: - “Mas, daqui
desta sacada, a senhora pode contemplar as palmeiras da Getúlio Vargas!” Era o
átomo de verde consolador que nos oferecia...
Antes de tudo, `à nossa frente, uns oitenta
metros quadrados do telhado cinzento da agência do Banrisul, que certamente não
romantizam o panorama. Depois dele, um velho prédio de apartamentos, que,
em recurso contra as goteiras, teve seu telhado recoberto com uma
capa aluminizada, que brilha à luz do sol ou mesmo ao tímido luar,
ofuscando a visão dos vizinhos. Além do prédio de telhado ofuscante, mesmo sem
poder enxergar nada, já sabemos o que existe: outro modesto edifício de
apartamentos, uma oficina mecânica, agora evoluindo para “estacionamento
rotativo”, farmácia homeopática, lojinha de serviços de informática,
varejo de calçados de baixo preço, lancheria de baurus e pratos ligeiros
(recuso-me a falar em “fast food” e outras inglesices) e até um abrigo para
pessoas idosas que invoca o Arcanjo Rafael. Mais além, a esquina da Rua
Barbedo, outra peculiaridade do bairro: rua já secular, ostentando o sobrenome
de uma família tradicional, embora sem identificar o homenageado pelo
prenome. Seria isso desnecessário naquele final do século 19, tal a importância
social do homenageado? A outra face da avenida, seu lado par, nos oferece uma
visão mais civilizada: há edifícios de construção recente, bem conservados, a
porta movimentada de uma academia de ginástica, o vaivém incessante de uma
agência lotérica. Mas prossegue a mixórdia desta cidade de crescimento
espontâneo: há restaurantes, confeitaria, pequenas lojas e, mais além, fora das
minhas vistas, o palacete enfeitado, de inspiração “art nouveau”, que foi da
família Noronha, remanescente quase único dos solares nobres da velha Avenida
13 de Maio (teve esse nome até 1937), e que hoje hospeda uma empresa comercial.
Curiosidade que ainda se pode observar nesse
panorama confuso é o da grande extensão dos fundos desses prédios, que no
passado teriam sido área de hortas, de jardins e até de cocheiras, ao tempo em
que havia cavalos e carros a serviço das famílias. Tal amplitude dos terrenos,
da frente aos fundos, favorece hoje os caprichos da verticalização das
construções, ou faz deles área ideal para a “indústria” do estacionamento
de automóveis, um dos ramos de negócio mais rentáveis da mixórdia urbana.
Se me detenho a escrever sobre essa inglória paisagem, é pelo vivo
contraste com a que nós desfrutamos em nosso apartamento de Torres, - um luxo de panorama físico e
humano, com os aparados da Serra emoldurando o fundo, o Atlântico pelo leste,
e, logo defronte a nossas vistas, o traçado sinuoso do Mampituba, seus barcos
de pesca indo e vindo do mar, sua ponte rodoviária, sua ponte pênsil, os
restaurantes de beira-rio, os pescadores de caniço, que estão presentes desde a
madrugada logo abaixo da nossa janela.
8 comentários:
Eventuais ou não, siga escrevendo as tuas crônicas que sempre terás leitores que te admiram. Em breve estarás mirando o Atlântico, o Mampituba, a Serra do Mar e também ouvirás as badaladas do sino de Passo de Torres e os espetáculos musicais da concha acústica.
Boa noite pai e obrigado pela leitura! Beijo
Acho excelente essa experiência de continuar a praticar a crônica por meios digitais!
Quero receber os sempre interessantes e estimulantes textos de sua lavra!
Abraço,
Acolhemos com muita honra em nosso espaço a escrita brilhante do nosso vizinho e historiador conterrâneo SÉRGIO DA COSTA FRANCO.
Estás sofisticando a tua coluna, amigo Souza....
Abraços
Cabeda
É um privilégio poder me deparar com mais uma excelente crônica desse mago das letras, que andava meio sumido e que, agora, graças ao magnífico blog do querido Poeta das Águas Doces, ressurge, como por encanto, para nos brindar com um texto, ao mesmo tempo tão fértil e tão nostálgico. Parabéns ao autor do texto, pela costumeira qualidade, e também ao Poeta das Águas Doces, pela inestimável oportunidade de fazê-lo ressurgir. Marco Aurélio Vasconcellos
Caro José Alberto,
Gostei muito da crônica do nosso conterrâneo, Sérgio da Costa Franco.
Ele fez uma pintura do nosso bairro.
Excelente descrição que me fez sentir andando por todos os lugares a que ele descreve.
Parabéns por tê-lo escolhido.
Com especial abraço do Hunder.
Caro conterrâneo
Mais uma vez quero cumprimentá-lo por receber a colaboração de nosso talentoso jaguarense, Sérgio da Costa Franco. Espero que continue contribuindo para enriquecer ainda mais esse notável espaço, que o Blogue do Poeta das Águas Doces. Wenceslau.
Parabéns ao blog "Poeta das águas doces" e ao qualificado escritor Sergio da Costa Franco.
Todos ganhamos, todos crescemos.
Continuem.
Aguardamos.
Fraterno abraço.
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