sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A estreia de Sergio da Costa Franco, com louvores

Como não tenho mais jornal  para escrever, cedo ao impulso escrevinhador para cometer uma ou outra  crônica extemporânea e chatear os amigos e parentes. Abraço do  Sérgio (Costa Franco).
A MIXÓRDIA URBANA

O que vejo da minha janela não sugere poemas de amor nem de deslumbramento com a natureza, nem mesmo recordações amenas de minha distante infância no Menino Deus da década de 1930. É um retângulo feio de imagens heterogêneas, onde se mesclam modernos prédios de apartamentos à direita, do outro lado da avenida, com extensos telhados mal conservados, destacando-se o do edifício que faz paralelo com o meu, todo remendado com uma capa aluminizada, que brilha ao sol e ofende os olhos. Mais além vejo antenas, caixas d’água e as copas de algumas esgalgadas palmeiras, com as quais outrora se pretendeu arborizar e humanizar um bairro que fora rural e bucólico até o fim do século 19.
A dificuldade de conseguir apartamento que alojasse a biblioteca nos obrigara a uma demorada e penosa peregrinação pelas imobiliárias, até descobrirmos este simpático 402, longe do tráfego e dos barulhos da avenida, na face lateral do Edifício Palácio de Versailles. Internamente cômodo e apropriado às nossas necessidades, o apartamento nos condenava, entretanto, a essa prosaica e melancólica paisagem, longe de parques, de verdes e de quaisquer outros atrativos urbanos. Quando, no momento de fechar negócio, minha mulher lamentava essa pobreza da paisagem, o corretor Lorenci, com aquela infatigável capacidade de argumentar, que é própria do ofício, apontou para as esbeltas e despojadas árvores da avenida: - “Mas, daqui desta sacada, a senhora pode contemplar as palmeiras da Getúlio Vargas!” Era o átomo de verde consolador que nos oferecia...
Antes de tudo, `à nossa frente, uns oitenta metros quadrados do telhado cinzento da agência do Banrisul, que certamente não romantizam o panorama. Depois dele, um velho prédio de  apartamentos, que, em recurso contra as goteiras, teve seu telhado   recoberto com uma capa aluminizada, que brilha à luz do sol ou mesmo ao tímido  luar, ofuscando a visão dos vizinhos. Além do prédio de telhado ofuscante, mesmo sem poder enxergar nada, já sabemos o que existe: outro modesto edifício de apartamentos, uma oficina mecânica, agora evoluindo para “estacionamento rotativo”, farmácia homeopática, lojinha de serviços de informática,  varejo de calçados de baixo preço, lancheria de baurus e pratos ligeiros (recuso-me a falar em “fast food” e outras inglesices) e até um abrigo para pessoas idosas que invoca o Arcanjo Rafael. Mais além, a esquina da Rua Barbedo, outra peculiaridade do bairro: rua já secular, ostentando o sobrenome de uma família tradicional, embora sem identificar o  homenageado pelo prenome. Seria isso desnecessário naquele final do século 19, tal a importância social do homenageado? A outra face da avenida, seu lado par, nos oferece uma visão mais civilizada: há edifícios de construção recente, bem conservados, a porta movimentada de uma academia de ginástica, o vaivém incessante de uma agência lotérica. Mas prossegue a mixórdia desta cidade de crescimento espontâneo: há restaurantes, confeitaria, pequenas lojas e, mais além, fora das minhas vistas, o palacete enfeitado, de inspiração “art nouveau”, que foi da família Noronha, remanescente quase único dos solares nobres da velha Avenida 13 de Maio (teve esse nome até 1937), e que hoje hospeda uma empresa comercial.
Curiosidade que ainda se pode observar nesse panorama confuso é o da grande extensão dos fundos desses prédios, que no passado teriam sido área de hortas, de jardins e até de cocheiras, ao tempo em que havia cavalos e carros a serviço das famílias. Tal amplitude dos terrenos, da frente aos fundos, favorece hoje os caprichos da verticalização das construções, ou faz deles área ideal para a “indústria” do  estacionamento de automóveis, um dos ramos de negócio mais rentáveis da mixórdia urbana.
Se me detenho a escrever sobre essa inglória paisagem, é pelo vivo contraste com a que nós desfrutamos em nosso apartamento de Torres, - um luxo de panorama físico e humano, com os aparados da Serra emoldurando o fundo, o Atlântico pelo leste, e, logo defronte a nossas vistas, o traçado sinuoso do Mampituba, seus barcos de pesca indo e vindo do mar, sua ponte rodoviária, sua ponte pênsil, os restaurantes de beira-rio, os pescadores de caniço, que estão presentes desde a madrugada logo abaixo da nossa janela.

8 comentários:

Fernando Franco disse...

Eventuais ou não, siga escrevendo as tuas crônicas que sempre terás leitores que te admiram. Em breve estarás mirando o Atlântico, o Mampituba, a Serra do Mar e também ouvirás as badaladas do sino de Passo de Torres e os espetáculos musicais da concha acústica.
Boa noite pai e obrigado pela leitura! Beijo

Luiz Augusto Fischer disse...

Acho excelente essa experiência de continuar a praticar a crônica por meios digitais!
Quero receber os sempre interessantes e estimulantes textos de sua lavra!
Abraço,

JASouza. disse...

Acolhemos com muita honra em nosso espaço a escrita brilhante do nosso vizinho e historiador conterrâneo SÉRGIO DA COSTA FRANCO.

Anônimo disse...

Estás sofisticando a tua coluna, amigo Souza....
Abraços
Cabeda

Marco Aurélio Vasconcellos disse...

É um privilégio poder me deparar com mais uma excelente crônica desse mago das letras, que andava meio sumido e que, agora, graças ao magnífico blog do querido Poeta das Águas Doces, ressurge, como por encanto, para nos brindar com um texto, ao mesmo tempo tão fértil e tão nostálgico. Parabéns ao autor do texto, pela costumeira qualidade, e também ao Poeta das Águas Doces, pela inestimável oportunidade de fazê-lo ressurgir. Marco Aurélio Vasconcellos

Anônimo disse...

Caro José Alberto,
Gostei muito da crônica do nosso conterrâneo, Sérgio da Costa Franco.
Ele fez uma pintura do nosso bairro.
Excelente descrição que me fez sentir andando por todos os lugares a que ele descreve.
Parabéns por tê-lo escolhido.
Com especial abraço do Hunder.

Blog do Wenceslau disse...

Caro conterrâneo
Mais uma vez quero cumprimentá-lo por receber a colaboração de nosso talentoso jaguarense, Sérgio da Costa Franco. Espero que continue contribuindo para enriquecer ainda mais esse notável espaço, que o Blogue do Poeta das Águas Doces. Wenceslau.

João Pompilio Neves Pólvora disse...

Parabéns ao blog "Poeta das águas doces" e ao qualificado escritor Sergio da Costa Franco.
Todos ganhamos, todos crescemos.
Continuem.
Aguardamos.
Fraterno abraço.