sexta-feira, 6 de junho de 2008

Quando vai me deixar esse remorso?

"O cheiro óbvio de remédios e desinfetantes percorre os corredores do hospital. O quarto está cheio de gente e de conversas. Poucos tubos para uma enfermidade deste calibre. Recostado na cama, ao centro de todos, ele mastiga bolachas amolecidas no leite. Vê quando chego. Tenho certeza que me reconhece. Seus olhos escurecem como no efeito súbito de algum veneno. Tento sorrir, ele não. Paralisa em mim seu olhar retilíneo. A mulher a seu lado enfia-lhe mais uma bolacha pela boca. Ele tritura com raiva." (Themis Vieira da Silva)
Não tinha a mínima noção do que se passava a seu redor. Muitas vezes nós o víamos andando nú dentro de casa. Era uma dificuldade imensa para vestí-lo. Já não controlava mais as necessidades fisiológicas; suas roupas precisavam ser lavadas constantemente. Todas as noites tínhamos de levá-lo até seu quarto na hora de dormir. Então se punha a falar com parentes já falecidos, ignorando nossa presença ali perto. Meu marido inquietava-se, vendo a velhice tomar conta de mim. Os atritos sucediam-se com nossos filhos; eles não podiam desfrutar plenamente a sua juventude, ocupados em vigiar os passos do avô.
A ambulância chegou na clínica. A maca foi conduzida até uma sala de espera. Eu o acompanhei para providenciar a internação. Muito me custara assim decidir. Ele sempre morou conosco desde que mamãe falecera há quinze anos. Mas lembrei-me das recomendações do médico: o desgaste da família, que eu me poupasse. A recepcionista veio me atender; encontrou-me atarantada com minhas dúvidas. Preenchi o formulário de forma mecânica, quase rasgando-o. Querendo desistir. Depois, levaram-no para o quarto que lhe foi destinado. Aos prantos, voltei para casa. Sozinha.
Junto com meu marido, venho para a visita. Os garotos ficaram em casa; também estão sentindo falta do avô. Os corredores do hospital são um verdadeiro labirinto: custamos a encontrar o caminho certo. Eu preciso conter-me para não sair em desabalada carreira. Nossos pés pisam macio na passadeira que se estreita na longa distância. Fiapos úmidos escorrem em minha face. Disfarço, o lenço escondido na mão fechada, enquanto nos mantemos atentos na numeração das portas que se sucedem. Estou ansiosa, não sabendo como ele nos vai receber.
Algum dia, é certo, ele partirá do nosso convívio. Essas visitas deixarão de ser cumpridas. Ele irá descansar do isolamento que lhe foi imposto por essa maldita doença. E comigo ficará uma pontinha de remorso.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostaria de não ter lido a confissão anexa. É muito triste.

Chamei de "confissão" propositalmente para agravar a força da ficção. E quando o escritor tem essa pontaria, alcança o leitor.

Anônimo disse...

Souza
Muito triste esta leitura, não passei por isso, mas isto já é
muito normal nas famílias.
Diná