segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O PRELÚDIO PARA AQUELA ALMA ILUMINADA


Na baixada daquela rua, cheia de buracos e cascalhos, fazendo esquina com o caminho que vinha do Asilo, situava-se um pequeno sobrado. A umidade constante do local, encravado naquele canto por uma sanga rodeada de taquarais correndo pela divisa do terreno, retocava de um rosa esmaecido a sua pintura mais que descascada. A fachada principal se recuava dando espaço para um roseiral a separá-la da mureta com o portão de madeira em frente ao íngreme barranco, no cimo do qual se avistava hospital e capela da Santa Casa. Na lateral, possuía ainda um avanço de um só piso e pé-direito de pouca altura e uma pequena porta a entestar com a Rua da Baixada. Por ali se entrava no humilde estabelecimento daquele sapateiro que se fizera respeitar pela clientela das redondezas com a qualidade dos seus serviços.
Lá dentro, Alemão, como era conhecido no lugar, mantinha-se ligado ao movimento da rua, enquanto amaciava alguma sola de couro batendo diligente com o martelo num dos suportes do tripé acomodado entre os joelhos dobrados e cobertos pelo avental ensebado, a se equilibrar sentado numa rústica banqueta. Dali ele enxergava, no sol a sol das suas lides, o monótono cortejo das mesmas caras que se repetiam a cada dia, nas rotineiras passagens das idas e vindas dos locais de trabalho. Sentidos aguçados, tanto podia reconhecer o passo marcial do sargentão se dirigindo apressado ao Quartel como o perfume adocicado das prostitutas, perambulando ali perto, a catar os últimos raios solares para se arejarem um pouco do mofo da Pensão.
 - Seu Alemão! Seu Ale... mão... – o guri entrou na sapataria tropeçando desavisado no falso degrau, pois não atinara em desacelerar a corrida desabalada em que vinha rua abaixo, quase expelindo os bofes boca a fora, resultado do atropelo da fala com a respiração.
- Te acalma, moleque! Afinal por que toda essa correria? – parecia que Alemão, a entrada imprevista, fora pego de surpresa.
- Foi a filha do Maestro, seu Alemão... Ela me pediu para lhe chamar o mais rápido possível. E que é para o senhor levar o instrumento... Entendeu? – o guri deu o recado e se mandou porta afora sem dar mais explicações, tão estabanado como entrara.
A situação inusitada, logo foi se desvencilhando do avental que lhe protegia a roupa do uso diário, ao mesmo tempo em que gritava para a mulher lá na cozinha preparando o almoço:
- Me alcança o “cachimbo”... Vamos, rápido, que eu estou precisando ir à casa do Maestro!
Não precisou falar a segunda vez, em seguida a esposa já lhe trazia o seu carinhoso “cachimbo”, um inestimável sax-tenor. Apanhou-o já dentro do estojo e saiu apurado para a rua, sem dar ouvidos à mulher sugerindo que levasse algum casaco ou qualquer outro abrigo para se proteger da garoa fina que caía lá fora.
Enquanto subia a Rua da Baixada a passos resolutos, começou a lembrar como o Maestro se apegara a ele a ponto de o considerar um discípulo predileto. O Maestro apreciava a obstinação com que ele se dedicava a ensaiar, tentando aperfeiçoar a sua maneira de tocar o instrumento que lhe havia sugerido aprender. Os outros componentes da Banda até que tinham mais facilidade em assimilar de pronto as instruções do Maestro, porém, a tranquilidade com que se detinha numa constante busca de perfeccionismo na execução musical era motivo daquela admiração. Se bem que custasse mais a fixar as notas de uma partitura, tornava-se impecável após dominá-las por completo.
Lépido, duas quadras acima, já dobrava à direita quando se deu conta de que desconhecia a razão do chamado do Maestro. Apenas sabia que este se encontrava adoentado há alguns dias, recente ainda era sua última visita. E lhe chegavam as notícias dizendo que o Maestro passava bem, em franca recuperação. Mas que diabo ser chamado àquela hora da manhã sem mais delongas. A dúvida se instalava em seu pensamento: e se fosse coisa grave? Ah, se fosse, deveriam ter chamado o médico e não ele! Não, não pode ser.
Ai sua atenção se voltou para o outro lado da rua, um casarão de linhas clássicas, aqueles janelões antigos, sitos dois a dois de cada lado da enorme porta de carvalho, entalhes em relevo que combinavam com a eclética fachada, na qual ainda se viam as discretas aberturas destinadas a ventilar o amplo porão abaixo do pavimento principal. À entrada entreaberta, já o aguardava a filha do Maestro, logo veio a seu encontro assim que o avistou.
- Que bom, Alemão, que vieste em seguida. Papai está lá dentro, ansioso por te falar alguma coisa, insistiu muito para que te chamasse. - Ele nem conseguiu dizer qualquer palavra, apenas se limitou a ser conduzido pela jovem senhora, subindo os cinco degraus do hall de entrada, passando da sala de visitas ao aposento em que se encontrava recolhido o Maestro.
O ambiente refletia uma tranquilidade aparente através da relativa imensidão daquele espaço onde se alternavam harmoniosas as tonalidades claras e escuras das paredes e dos móveis do austero dormitório. Numa cama de casal, obra artesanal de madeira maciça, enfiava-se na cabeceira a tela do mosquiteiro pendente do teto. Ali estava o Maestro, cabeça recostada num amontoado de travesseiros e os braços soltos sobre lençóis e cobertas limpas e arrumadas. Os olhos dele ganharam novo brilho com a chegada do bom amigo e um sorriso feliz se estampou naquela face desgastada pelo tempo.
- Aqui estou, Maestro, pronto para lhe atender... – nem concluiu a frase, pois reparava o enfermo fazendo sinal com a mão para que se aproximasse mais como se quisesse comunicar algo. E ele não hesitou em chegar até a beira do leito a fim de escutar melhor aquela voz sussurrante.
- Te lembras, meu filho, daquela Ave Maria que te ensinei para tocares junto com o Coro da Igreja? Pois bem, eu gostaria que a executasses agora no teu virtuoso sax.
Alemão nem titubeou, retirou o “cachimbo” do estojo e destampou o bocal, aproximando-o dos lábios já prontos para aquela interpretação. De leve, os dedos ainda estavam engraxados e as unhas encardidas pelo serviço interrompido em questão de instantes. Sentiu-se embaraçado com a grotesca aparência, mas mesmo assim procurou esquecer, soltando o ar que percorria aquele labirinto de carnes e metais, lá do fundo das suas entranhas para se lançar na graciosa revoada do som, lá do âmago da sua sensibilidade a se espalhar livre pela atmosfera.
Entrementes, o Maestro se enlevava numa sensação de paz e conforto aliviando o corpo combalido. Fechava os olhos e ficava assistindo à retrospectiva da sua vida. O lugarejo onde nascera, encravado nas montanhas da longínqua Veneto. As horas em que se detinha sentado na cerca de pedras, pastoreando as ovelhas no vale acidentado, onde a campina surgia do solo rochoso. A sinfonia da natureza, o vento soprando nas grotas e a água do riacho correndo entre os cascalhos do seu leito. A longa caminhada de todos os dias em gélidos amanheceres rumo à Escola. O pífaro jogando melodias na estrada de chão batido, conforme a imaginação criava. O sonho de chegar ao Liceu de Música e se tornar regente de uma grande orquestra. De um dia se apresentar no Scala de Milan. O grande conflito mundial, países arrasados, populações inteiras na busca de um destino mais alentador. A chegada ao Brasil, uma aventura que modificou todos os hábitos da sua existência. A retomada de antigos anseios dos quais jamais abdicou. Sempre investindo em sua verdadeira vocação, o remanescente que fora realizado compensava amplamente o empenho nessa árdua batalha. No final, a balança pendia a seu favor.

No ambiente, pairava o sobre-humano esforço do saxofonista para não interromper a execução daquela peça instrumental.

6 comentários:

Hunder Everto Corrêa disse...

José Alberto, excelente.
Parabens e um abraço

Anônimo disse...

Linguagem escorreita.
Belíssimo mote, bom José Alberto.
Dominou a difícil arte de "cronicar".

Baitabracito / Aguinaldo

Anônimo disse...

Um belo conto, José Alberto.
Congratulações do vizinho e conterrâneo Sérgio

Academia de Letras de Crateús - ALC disse...

Maestro... Quem rege uma crônica assim faz parte de todas as bandas literárias do mundo. Um grande abraço deste seu admirador dos Sertões de Cratheús!

Eulálio Delmar Faria disse...

O teu mais antigo leitor recordou belos e importantes momentos. Agradecido. Bela homenagem ao nosso mestre.

Blog do Wenceslau disse...

Conterrâneo,
Se "embaralhamos" o tempo e o não-tempo, podemos supor que estiveste presente...Cumprimentos. Abraços. Wenceslau.