quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

*CRÔNICAS DE CANTALÍCIO E FLORISBELA (II)

O primo Luiz Eduardo Fontes de Mello Almeida, um dos coordenadores do portal de nossa árvore genealógica Family Search, descobriu um anúncio de 1916 em que o pai de Florisbela, meu avô José Vieira de Souza, coloca para venda ou aluguel a sua propriedade em Jaguarão, a fim de viajar a Portugal, onde deveria se submeter a tratamento de saúde. Tal fato me faz relembrar que aquela minha tia e mãe de criação nos contava que avó Joaquina chegou a costurar uma cinta-bolsa na vestimenta para que ele levasse o dinheiro necessário ao custeio de sua estada no seu país de origem.
Como não cheguei a conhecer esses meus avós paternos José Vieira e Joaquina Teixeira de Souza, sempre foi difícil localizar outros lugares em que tivessem vivido além daquela cocheira. Ainda mais que pouco me despertava curiosidade em tenra idade sobre acontecimentos de antanho, como os locais da existência daquelas privadas de fundos que eram trocadas de tempos em tempos para decantação e secagem dos dejetos utilizados nas plantações. Apenas ainda ouço as palavras de Dª. Florisbela ensinando os benefícios oriundos desse reaproveitamento, a seu ver: - “Não existe melhor adubo”.
Florisbela de Souza Resem era uma mulher dominadora que sempre procurava colocar ordem onde se fizesse necessário, mesmo lançando mão de algumas artimanhas. Eu que o diga, tarado por panquecas, comendo a minha parte e cobiçando a “enrolada” dos outros comensais no almoço – não queres mais, podes me passar a tua – nem me dava conta da sua contrariedade. Pois não é que certo dia apresentou na mesa de refeições aquele “pratarrão” das tão desejadas, anunciando que era só para mim e eu consumi toda aquela oferenda... E durante algum tempo, não as podia enxergar à frente!
E não ficou só nisso meu aprendizado com ela, sempre se esmerando naqueles tratamentos com remédios caseiros. Um deles, preparado na chaleira com café forte, bem amargo, no qual mergulhava um tição de brasa, para que se ingerisse como purgante. Era um filme de horror para eu protagonizar aquela cena que se acentuava com minha rebeldia. E para atenuar esse protesto, uma vez me trouxe uma “malzbier”, minha predileta que, nem sei como, sorvi a garrafa todinha, degustando o líquido gota a gota, sem desconfiar da escamoteação no conteúdo desta bebida.
A matrona Dª. Bela, em assuntos da casa, opinava sem maiores contestações nas muitas reformas que procedeu no prédio, alterando toda uma estrutura projetada pelos empreiteiros na planta original. De minha parte, estranhava aquela janela de vidros e postigos na parede divisória entre um dos quartos e o banheiro. Mais tarde, verifiquei que se tratava de uma abertura externa, sendo aquele banheiro colocado sobre a laje num espaço vago do pátio interno. E ainda havia alguns “hóspedes” que costumavam espiar com leve abertura dos postigos, caçoando de minhas imperfeições estéticas...
As paredes internas de madeira aos poucos iam sendo desmontadas sem que se apagassem os vestígios da divisão anterior. Os diferentes tipos de ladrilhos usados nas peças dos fundos denunciavam os locais onde esteve funcionando cozinha, banheiro e dispensa. Tia Florisbela dava mais ênfase ao aspecto prático do que o estético com o fim de melhor acomodar a todos descendentes que ali buscavam se manter reunidos no estreitamento dos laços familiares. Pouco importaria uma ostentação difícil de ser obtida a custo de parcos recursos que eram geridos de forma conservadora e modesta. 
Dona Belinha, dona Belinha era uma guerreira: resistiu anos a fio num tempo em que inexistiam os apelos do consumo moderno. Estava sempre pronta a preservar a figura carismática do “Major” Cantalício com o apoio que lhe dispensava nos bons e nos maus momentos. Mas sobreveio a insidiosa arteriosclerose, apagando-lhe a consciência e prostrando-a numa cama do hospital, em que se fazia acompanhar durante todo dia por seu esposo e velho companheiro de árduas batalhas, então impotente para lhe proporcionar uma mais digna qualidade de vida

8 comentários:

Átila Resem disse...

Tio, existem muitos casos envolvendo até o sobrenatural, ocorrido por aquela região. Com certeza algum familiar nossa do passado foi testemunha de algum fato. As inchentes fizeram muitas vítimas.

Garoeiro disse...

Caríssimo Souza,
Obrigado por mais esta preciosidade que somente você poderia trazer, com generosa lembrança desses mundos encantados do passado que vivem dentro de nossas almas...
Natal, RN, 11 de janeiro de 2018.
Poeta Garoeiro

Unknown disse...

Meu caro conterrâneo José Alberto. As lembranças forçam a saudade do que já passou.Que bom que te trazem essas recordações. Um abraço. Hunder

Maria da Luz disse...

Tio José Alberto, amei a crônica. Embora muito pequena, não me lembro da vó Bela, mas a mãe sempre manteve muito viva em nossas memórias a presença dela. Beijo.

Graacira da Silveira disse...

Eu também me lembro pouco dela, mas sempre a admirei pelos relatos familiares. Bela crônica. Obrigada.

Anônimo disse...

Querido tiozinho, muitas vezes penso: "falar não é suficiente, tem que viver a situação para saber!" Bom, falaste muito bem, por que viveste muito bem cada detalhe dessa época, sendo assim, sabes muito bem o que falas! A exemplo da mana, Maria da Luz, e da prima, Gracira, também não tive um contato tão estreito com a vó "Bela", a ponto de tecer comentários sobre minha convivência com ela. Mas, por intermédio do vô Cantalício e pela minha mãe, Lucy, soube que grande amiga, companheira e colaboradora ela foi para ele. Minha saudosa mãe, nunca deixou de nos ofertar com estórias sobre a fortaleza e retidão que representavam nossa vó Florisbela e a doçura e intelectualidade que representavam nosso vô Cantalício. Ressalto que, a meu ver, um não conseguiria ser o que foi, sem o outro! Beijos, meu amado e talentoso tiozinho! Lorena

Anônimo disse...

Meu caro José, vizinho e conterrâneo:
Muito boa a tua crônica sobre a dona Florisbela e seu Cantlício, pessoas que na minha infância conheci.
Passei por Jaguarão na semana passada e estive na frente da Livraria Miscelânea.
O prédio não é mais o mesmo mas nos mosaicos da calçada, ainda está o nome de “Miscelânea”.
Um abraço do Sérgio.

Carlos José de Azevedo Machado disse...

Meu caro José Alberto de Souza, nosso Tio Zezinho (meu tio emprestado). Agradeço a lembrança deste texto. Estou pesquisando o desenvolvimento do antigo Colégio Espirito Santo da Ordem dos Premonstratenses em Jaguarão (1901-1914). No ano de 1916 ainda se encontrava na cidade o Cônego Godofredo Evers, onde estava resolvendo as questões burocráticas do, infelizmente, fechamento daquele importante educandário. Eles deixaram um patrimônio imenso, o prédio onde hoje é a Casa de Cultura e o prédio da atual Escola Alberto Ribas, que eles construíram e inauguraram em 1907. Tudo que diz respeito a este período me interessa, ainda mais desta maneira literária que lhe é peculiar.
A Cocheira referida ficava, relativamente, a 150 metros do Colégio dos Premonstratenses, que ficava na Rua Joaquim Caetano paralela a Rua Andrade Neves, onde ficava este empreendimento do seu avô.
Abraço Tio Zezinho.