Em matéria de concretude, sou um péssimo
aprendiz. Bem sei que substantivos e adjetivos abstratos não se prestam à
escrita literária. De que adianta estar consciente desse fato, se volta e meia
lá estou eu largando aqueles termos malditos como ternura, amor, paixão,
querer, cobiça e desatino. Sem dúvida, um vício ocasionado pela preguiça em
descrever essas sensações através de palavras concretas como o fez o cineasta
Kielowski ao definir os títulos da sua Trilogia das Cores em “A Liberdade é
Azul”, “A Igualdade é Branca” e “A Fraternidade é Vermelha”, nos quais, apesar
de utilizar substantivos abstratos, torna-os visíveis pelo colorido de alguns
espectros do arco-íris.
“Que me perdoem as feias, mas a beleza é
fundamental” – até o poetinha Vinicius pisou numa casca de banana, considerando
o grau de abstração da frase. Beleza interior então é terrível, um tremendo
desafio para quem pretende traduzir um sentimento que só o coração consegue enxergar. Já
a exterior enche os nossos olhos quando a contemplamos duma forma platônica, em
que os sentidos não têm acesso. Evidente que beleza é um substantivo abstrato,
pois necessita uma descrição mais detalhada como pinceladas artísticas na tela
de um pintor, independente de sua fama, e requer uma apreciação crítica para
ser devidamente avaliada. Aqui deixo claro que estou tratando da beleza
feminina.
Elas não eram tipos de formosura, porém
extremamente meigas e simpáticas, irradiavam um encanto para enfeitiçar
qualquer pessoa a seu redor. Tinham um melodioso tom de voz que chamava atenção
até dos mais indiferentes, um entusiasmo que sempre excitava a virtude e um
brilho perene em seu olhar. Um caro custo para o coração não ver tanta beleza
interior. Uma delas, tímida, pediu a uma de suas colegas para que me levasse
seu álbum de recordações a fim de fazer a respectiva abertura. Ali deixei registradas
aquelas primeiras impressões que deixavam de ser minhas ao compartilhá-las com
outros parceiros também comungando da mesma admiração.
Tem gente que não se conforma ao
constatar o resultado das consequências de uma Natureza inclemente com o passar
dos anos, penalizando o que de mais belo existe. E lá se vão as divas da nossa
mocidade, substituídas por outros modelos que vem ao encontro de nossos padrões
estéticos, mas não se enquadram em nossa expectativa de vida. A mente permanece
jovem, enquanto o físico se deteriora. Resta-nos apreciar o belo em todas suas
manifestações, como se estivéssemos revivendo nossa juventude por meio de
nossos descendentes. E elas estão ai, por toda parte, poderosas, cuidando da
aparência, nunca repetindo uma mesma roupa, para muitas uma ferramenta de
trabalho.
O bom gosto deve ser um componente
importante na beleza exterior, assim como uma embalagem bem planejada ajuda na
escolha de um produto de qualidade. Uma cara bonita ou um corpo esbelto pode
atrair atenção para si, mas não passa de um diamante bruto que precisa ser
lapidado. Para se produzirem, as mulheres enfrentam uma bateria de cuidados
desde banho de loja até cabeleireiros e maquiadores que as tornam mais
admiráveis nas festas e recepções sociais. Agora no dia a dia elas também se esmeram
e demonstram seu potencial de elegância desfilando nos passeios públicos sem outros
comprometimentos, a não ser modismos atuais.
O dia era sábado em que fazia as compras
semanais num supermercado, quando avistei aquela donzela circulando entre
gôndolas e balcões frigoríficos que me despertou o alerta para um detalhe
jamais notado em qualquer mulher – a discrição – que a tornava ainda mais atraente.
Não era daquelas espécies exuberantes, pois aparentava um equilíbrio incomum
sem quaisquer exageros. Morena, de olhos comuns, traços faciais perfeitos,
gestos graciosos, peso normal, manequim tipo tudo em cima. Elegante, vestia
calça branca e blusa combinando, cabelos bem penteados, um mínimo de maquiagem,
o mais simples e natural possível. Só lhe faltava uma varinha de condão para
ser uma fada...
Quando me deparava com ela naquelas
galerias e disfarçava com meu olhar tipo veneziana, parecia escutar uma voz telepática: “Quer olhar? Pode olhar a vontade!”
6 comentários:
Pois é amigo J.A Souza, é bem por aí...descrevendo onde que a recôndida memória habita e se habilita a manifestar da forma que lhe sobra...A cada porção de tempo que estrutura física experimenta,me convenço que a memória, pelo seu apelo virtual, é imune ao tempo...
Sir Artur Conan Doyle, acreditava em fadas...como seres elementais, que na natureza, tinham papel fundamental de proteção aos seres de outras origens como minerais, vegetais que por não terem intelecto seriam alvo de proteção...claro que haviam outros seres nesta cosmogonia, gnomos,duendes,elfos etc...Mas as fadas, pela sua essência, pairavam entre flores, dançando,numa eterna festa à beleza das cores da natureza...Mas o poeta as identifica no campo florido da memória, para gaúdio de todos nós...
A palavra "recôndita" é a maneira correta de grafar...e não recôndida como escrevi no comentário anterior...Meu português é sofrível, portanto cabe o conserto.
Você coloca seu coração em tudo que escreve, e amo isso. Continue analisando a vida desta forma e continuarei te admirando sempre.
Caro Souza:
Acredite! Esse texto é, sem dúvida, um dos melhores de tua autoria que já li. Exemplarmente bem escrito e repleto de verdades indesmentíveis.
Parabenizo-te.
Aqui vão o meu abraço e a minha admiração.
Marco Aurélio Vasconcellos
Meu caro amigo,
O texto me revelou mais uma faceta de sua personalidade - até agora desconhecida para mim: o meu conterrâneo abriga em seu íntimo uma propensão ao filosofismo? O trabalho merece um exame acadêmico! Parabéns. Abraço. (Blog do Wenceslau).
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