quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Intimidade devassada

Na esquina das avenidas Praia de Belas e Bastian, em frente ao Shopping onde hoje situa-se o Bankboston, existia uma casa estilo espanhol, residência do ex-radialista Ruy Figueira, outrora famoso Reporter Esso da Rádio Farroupilha. Quando passava por ali no meu trajeto de ida para o trabalho, sempre avistava a simpática figura com o seu indefectível charuto, ora arrumando as pedrinhas do piso da calçada, ora podando caprichosamente a cerca viva existente por detrás do muro baixo que circundava o imóvel.
Na época em que estavam construindo o novo Shopping, vendo-o a varrer pacientemente a sua calçada dia após dia para livrar-se da constante sujeira ocasionada pelos caminhões que trafegavam levando a terra das escavações daquele terreno em frente, tentei solidarizar-me com a sua sina, protestando contra aquela sua faina de Sísifo. Diplomaticamente, ele me deu a entender como é que iria se incomodar com uma obra que iria valorizar o seu imóvel no futuro.
Várias vezes, encontrando-me dentro de casa, sentia o cheiro forte do tabaco e comentava para Gislaine, minha esposa - garanto que é o Ruy que está passando aí em frente... Não dava outra. Outro dia, lendo sobre o cheiro adocicado (?) do charuto, resolvi consultar o Figueira especialista e qual não foi a minha surpresa quando ele me revelou que não tinha... Olfato!
Posteriormente, o Ruy veio a perder a esposa adoentada, viuvo curtia a sua solidão na casa vazia até que teve um derrame. O seu filho Marçal, de início tentou acompanhá-lo na antiga habitação, mas terminou por levá-lo para morar com sua família. A tradicional casa estilo colonial espanhol, em seguida foi colocada a venda, sendo adquirida por conhecido político que ali pretendia construir um prédio para instalar o seu escritório de advocacia. E o casarão veio abaixo sob o martelar inclemente das marretas, devastação total e, sob as ruínas, permaneu a lareira ereta por um bom período de tempo.
Incomodava-me deveras com o que contemplavam os meus olhos - a lareira isolada no meio dos escombros. Para mim, a intimidade devassada. E um dia botei no papel aquilo que sentia. Um texto despretencioso que dependia de imagens para transmitir aquela derrocada, enviei para vários amigos as cópias ilustradas. Um deles, conhecido cantor e compositor nativista, recebeu a mensagem justo no dia em que separava-se de sua esposa e então, impressionado, telefonou-me comunicando a coincidência, até prometeu-me botar música no poemeto. Mas isto já é outra história.
Descobri e dou de barato: clique na ilustração para ver os detalhes.