sexta-feira, 24 de agosto de 2007

L.F.Veríssimo - ZH 16/10/82 - Pag.6 - A Serenata (II)

Souza, que se autodenominava o último romântico do mundo, apaixonara-se por Laura, que não ligava àquele homem tão antigo que lhe mandava flores e sonetos. Aí Souza teve uma idéia. Faria uma serenata para Laura. O cantor seria um amigo, chamado Nosso. De tanto ser apontado pela turma como o nosso Cauby, o apelido pegara. Mas havia um problema. Laura morava num oitavo andar, fundos. E atrás do seu edifício passava um viaduto. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
Souza e seu grupo - dois violões, um cavaquinho, uma flauta e o Nosso - foram examinar o terreno. O viaduto tinha uma vantagem. Passava à altura do quarto andar, o que os aproximava da janela de Laura, no oitavo. Mas tinha o perigo de serem atropelados no meio da serenata.
- Que horas vai ser o troço? - perguntou o Nosso.
- Tem que ser depois da meia noite. Senão não tem graça.
- A essa hora não tem muito tráfego. E se aparecer um carro, a gente tem tempo de correr.
- Não - disse Souza. Não podia conceber a Laura vendo seus seresteiros dispersados por um ônibus no meio da segunda estrofe. Só havia uma solução: - Vamos entrar no edifício.
- Como?
- Pela porta, ora. Entramos, subimos no elevador e tocamos no corredor, em frente à porta dela.
O Nosso não gostou muito. Serenata de corredor, não parecia direito. Mas enfim, a festa era do Souza.
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Encontram-se na porta do edifício à meia noite. Souza estranhou a bagagem do Saraiva, um dos violonistas. O que era aquilo?
- Minha guitarra é elétrica!
- Mais esta. Quero ver arranjar tomada.
A porta do edifício estava trancada. Teriam que usar o porteiro eletrônico. Até apertarem no botão certo, ouviram vários desaforos. Finalmente acertaram. A voz de sono da Laura perguntou o que era.
- Vamos lá! - gritou o Souza.
Pelo interfone, Laura ouviu o Nosso começar a cantar, depois gritos - É a polícia... Calma lá... Nós não somos assal... - depois o que pareciam ser disparos. Depois não ouviu mais nada. Voltou para a cama e disse para o namorado, um analista de sistemas, que devia ser trote.
Quando soube do que tinha acontecido, Laura sentiu-se obrigada a ir visitar o Souza no hospital. A bala da polícia passara perto do pulmão. Quando viu a Laura entrar no quarto, o Souza pulou da cama, para horror dos amigos, e tropeçou no tubo do soro. Foi levado de volta à cama. A Laura pedindo desculpas. E ele mal podendo respirar, dizendo:
- Por quem sois. Por quem sois.
Era um incorrigível.
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Transcrevo essa crônica como compensação às inúmeras explicações que tive de passar a todos aqueles que confundiam, na época, a ficção com a realidade.

Um comentário:

Gerson Sicca disse...

Parabéns pelo belo blog. Cheguei aqui por indicação do ilustre Cladistone Arruda Dias, cujo único defeito é torcer para o Pelotas.
Abraço